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terça-feira, 27 de março de 2012

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3919 Data: 25 de março de 2012

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O SABADOIDO DO RETRATO DE RECORDAÇÕES

PARTE II

Meu irmão deu início a considerações sobre a política brasileira, mas escapou do assunto quando se lembrou que, depois de uma discussão dois sabadoidos atrás, que isso se tratava de um campo minado. Luca, na ocasião, vociferou contra José Serra, que fora presidente da UNE no governo João Goulart e por pouco não foi morto pela ditadura de Augusto Pinochet. Eu, para não ficar atrás, urrei contra Fernando Henrique Cardoso, que declarara, por ocasião da campanha eleitoral de 1998, que eram vagabundos todos aqueles que se aposentavam com menos de 50 anos de idade. “Ora, Fernando Henrique Cardoso, vagabundos são aqueles que se aposentam com menos de 80 anos.” Cláudio, por sua vez, investiu ferozmente contra o Brizola porque impediu que chegassem às bancas de jornais os exemplares da revista Playboy com os fotos da sua filha nua. Ele queria saber qual a nudez mais apavorante: a da Neuzinha ou da Hortênsia.

Como não prosperou o tema sobre política, voltei a pedir o retrato da minha turma de Admissão da Escola 9-10 Manoel Bomfim. Luca me devolveu, gentilmente, aquele instantâneo de 9 de setembro de 1959 e eu o examinei detidamente.

Éramos uns quarenta alunos, todos magros, alguns magricelas, como minha irmã. Nós não nos entupíamos de Coca-Cola ou outro refrigerante. Não havia Mc Donald's espalhados pelo Brasil e outras lojas de guloseimas que contribuem, hoje, com uns 40% de gordinhos numa turma de criança. As televisões eram poucas, em 1959, os televizinhos também, assim, nós brincávamos de correr até pelas ruas, algumas delas sem trânsito. Atualmente, as crianças, e também os adultos, estão muito ocupadas diante de uma televisão ou de um computador.

Na Inglaterra, Tony Blair, quando primeiro-ministro, em 2005, recorreu ao chef de cuisine Jamie Oliver, que ficou com a incumbência de tornar mais saudável a refeição das crianças que frequentavam as escolas públicas. Alguma coisa tem de ser feita para que não se confirme parte da frase do doutor Dráuzio Varella: “O maior assassino do século XX foi o cigarro, e do século XXI será a obesidade.”

A voz sonora do Luca convergiu, nesse instante, todas as atenções do Sabadoido. Lia ele uma crônica do Carlos Heitor Cony, que a Flor do 86 recortou da Folha de São Paulo.

“Se me perguntarem qual o livro mais importante que li, eu seria obrigado a citar uns 20 ou 30, sem incluir na lista a Bíblia e o catálogo de telefones. O mesmo aconteceria se me pedissem para lembrar o melhor jogador de futebol, o melhor samba, o melhor filme e o melhor sanduíche de carne assada da cidade.”

Luca baixou o recorte de jornal até o colo e quis saber se todos estavam de acordo até ali.

Apesar de o próprio Luca puxar a metralhadora para defender a posição do Chico Buarque de Holanda como o maior compositor popular brasileiro, o Cláudio, a bazuca contra quem duvidar que o maior de todos é o Tom Jobim, todos concordaram com as palavras do cronista. Luca prosseguiu, então, com a leitura.

“Agora, se a pergunta fosse feita sobre o poema que mais me impressionou, eu responderia sem qualquer hesitação: “O Corvo”, de Edgar Allan Poe.”

-Carlos Heitor Cony foi descobrir preponderância logo num assunto tão rico e diversificado: os poemas. - pensei sem me manifestar.

-Trata-se de um poema poderoso. - frisou o Luca.

-Never more. - disse a Gina, extirpando o terror dessas palavras de Edgar Allan Poe com sua expressão zombeteira.

-Há um desenho de “Os Simpsons” - não me lembro se sobre o Dia das Bruxas – em que o Homer Simpson está no papel do amante desesperado desse poema e recita: ...”Tira-me do peito essas fatais/ garras que abrindo vão a minha dor já crua/ e o corvo disse: “nunca mais” .” O Daniel viu esse desenho e recitava de cor esse poema de “Os Simpsons” de cor, quando guri. Aposto que ainda recita, hoje.

Após a minha tagarelice, a Gina informou que ele saiu, mas logo estaria de volta.

Nesse instante, ouviu-se o ruído do portão da frente da casa. Em um minuto, o meu sobrinho estava diante de nós.

-Daniel, recorda-se daquele poema “O Corvo”, que o Homer Simpson recitava num castelo?

-Eu me recordo do desenho. O corvo tinha a cara do Bart e perturbava o pai, o Homer Simpson.

-E o poema, Daniel? Ela fala da Leonor, que morreu, e o corvo diz “never more”.

-Ah, sim!... Já esqueci. - brincou com a minha expectativa.

-Carlinhos, você quer que o Daniel se lembre e uma coisa tão antiga?... - saiu a Gina em defesa do filho.

-”O Corvo” é um poema oral, feito para ser recitativo, Poe o recitava em saraus como se tratasse de um “lied” de Schubert, uma fuga de Bach. Por isso mesmo, o ritmo, a cadência, sobretudo as rimas internas dentro dos versos, representam uma dificuldade quase intransponível para a versão em outra língua, de um poema que, ao longo de mais de um século, foi e continua sendo dos mais traduzidos da literatura universal.”

-Machado de Assis traduziu “O Corvo”. - assinalei.

-Muitos traduziram. - disse o Luca brandindo o recorte feito de Rosa Grieco.

-Baudelaire, Malarmé...

Luca cessou a citação dos nomes dos tradutores para confessar a sua dificuldade com a pronúncia francesa.

Cláudio aproveitou a oportunidade para imitar cenas dos professores dos filmes “Anjo Azul” de Josef von Sternberg e “Amarcord”, de Fellini, que mostram a posição da língua para a pronúncia correta dos alunos, que falham fragorosamente para a alegria de todos.

-Falam lá fora de pronúncia de línguas estrangeiras. - disse ao meu sobrinho quando o encontrei na cozinha a caminho do banheiro para urinar.

-Carlão, sinto falta dos alemães dos Correios nesse meu trabalho na Casa da Moeda. Minha fluência no inglês se foi.

-Pois é, Daniel, na questão de moedas, brasileiros e alemães não estão se entendendo.

-Como assim?

-Os estrangeiros conseguem dinheiro com crédito baixo, então, eles investem no Brasil, onde as taxas de juros são elevadíssimas e, com a abundância de dinheiro estrangeiro aqui, o real fica supervalorizado, por isso a Dilma se queixou do tsunami monetário antes do encontro com a Angela Merkel. Mas o Brasil não é a vítima dessa história, pois não toma medidas para baixar as taxas de juros.

-É muita roubalheira, Carlão.

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