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quarta-feira, 21 de março de 2012

2116 - Radio Nacional


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3916 Data: 19 de março de 2012
GRITOS E SUSSURROS NO SABADOIDO
PARTE III
-Com a ditadura dos militares, o César de Alencar dedurou todo o mundo da Rádio Nacional.- sussurrou o Luca como se o clima de apreensão ainda persistisse.
-Dizem que a grande ambição da sua vida era se tornar diretor da Rádio nacional.- falei.
-Ele delatou o Dias Gomes.- frisou o Luca.
-Todos sabiam das ideias socialistas do Dias Gomes. O César de Alencar agiu como mau caráter quando alcaguetou artistas do elenco de novelas. Recordo-me que a minha mãe ouvia quase todas as novelas, e ela constatou, depois de 31 de março de 1964, que várias vozes sumiram. Foi um desencanto geral.- intervim.
-Vocês sabiam que, naquela época, a Rádio Nacional tinha uma penetração maior do que a TV Globo de hoje?- enfatizou o Luca.
-A TV Globo possui repetidoras por todo o Brasil que alteram uma grande parte da programação que sai do Rio de Janeiro, enquanto na Rádio Nacional não havia alteração alguma. O que se dizia aqui, no Rio, ressoava pelo país todo.
-Por isso há tantos times cariocas com torcedores espalhados pelo Brasil a fora.- pensei, enquanto o Cláudio falava.
Gina reapareceu, e o Luca, aproveitando, entregou-lhe um mimo da Rosa.
-Para mim?- surpreendeu-se.
-A Rosa fez questão, Gina.
Em seguida, ele se voltou para mim:
-A Rosa enviou este livro para você de presente.- repassou-me com umas folhas amarelas entre as páginas do mesmo.
-Antônio Vieira!- exclamei, embevecido.
-Imaginei que ela fosse me dar... - confessou.
Porém, o alentado volume dos Sermões estava comigo.
-Terei de fazer um grande esforço para não largar a biografia de Chopin, que ela também me presenteou, para não ler logo este livro.
-Leia os dois ao mesmo tempo.- propôs o Cláudio.
-Há certos livros que exigem a disciplina do leitor; não posso misturar Chopin com Antônio Vieira.
Enquanto eu me manifestava, colhia uma missiva, de dentro dos Sermões de Antônio Vieira, manuscrita pela doadora.
“Predileto “Mitron”, adentrei, em Salvador, o recinto em que o Vieira estalou. Comigo, não houve nem um cliquezinho, saí obtusa como entrei.” (…)
-Modéstia ou charme da Rosa?- especulei, enquanto a Gina demonstrava emoção com a lembrança da erudita “Flor do 86” (depois explico).
Interrompi a leitura da carta, para retomá-la depois, porque o Luca se pôs a ler, em voz alta, uma crônica do Carlos Heitor Cony sobre os bufões amargos.
Dizia o cronista, pela voz do nosso amigo, que não é de hoje que os artistas são os bobos da corte, “ou seja, do poder”. Citava ele dois exemplos, um de Victor Hugo e outro de Shakespeare. O primeiro bufão, ele anunciou como o da peça teatral “O Rei se Diverte”, e ao desenvolver a sua tese, Carlos Heitor Cony envereda pela ópera “Rigoletto” de Verdi, o que me levou a intervir na leitura do Luca.
-O Victor Hugo ficou uma fera com Verdi, quando este transformou a sua peça em ópera, mas se não fosse o compositor italiano “O Rei se Diverte” já teria caído no esquecimento.
Aproveitei o silêncio e prossegui:
-O rei que se diverte era Francisco I que, na ópera de Verdi, virou o Duque de Mântua por causa da censura austríaca sobre grande parte da Itália.
-E o Rigoletto? - quis saber o meu irmão.
-Rigoletto era Triboulet, o bobo da corte do reinado de Francisco I. Rigoletto deriva de “rigoller” - rir, em francês.
Sem modificar uma vírgula, Luca reproduziu para os presentes do Sabadoido este parágrafo de “O bufão amargo”:
“Não adiantou a vingança “a tremenda vendetta”, com que Rigoletto ameaçou o sedutor, por sinal, na melhor ária que Verdi escreveu contra o duque numa das suas óperas mais populares. Não adiantou: o poder se divertiu e quem pagou o pato foi o bufão, que ficou sem a filha e sem o emprego.”
-É a melhor ária, mesmo, da ópera?
Limitei-me a sorrir com a indagação do Luca. Se quisesse saber qual o melhor momento do Rigoletto, eu responderia, sem pestanejar, o quarteto “Bella Figlia dell' Amore”, que Franz Liszt considerava uma das melhores peças musicais criada pela mente humana.
Em seguida, Carlos Heitor Cony, levado pela voz do Luca, passou para o segundo exemplo: o bobo da corte do Rei Lear. Quanto ao Rei Lear, a autoria se restringiu a Shakespeare, apenas. É verdade que Verdi amadureceu, durante anos, a ideia de musicar esse drama, mas desistiu. E o Rei lear, como sabemos, não precisou do notável operista para se manter conhecida através do tempo, nem mesmo Otello, apesar de os musicólogos colocarem essa obra entre as três maiores do repertório operístico.
Eis um trecho do Carlos Heitor Cony que o Luca lia, na sessão do Sabadoido:
“Em “Rei Lear”, de Shakespeare, há outro bufão que diz a verdade o tempo todo para o velho rei que distribui seu reino e suas posses entre duas de suas filhas, sacrificando Cordélia, a mais fiel de todas. O bobo da corte chega a pensar que será chicoteado pela insolência, mas o rei limita-se a comentar: “És um bufão amargo” (“a bitter fool”). Ao que o bufão pergunta: “Qual a diferença entre um bufão amargo e um bufão doce?”
Como registramos acima, o cronista da Folha de São Paulo compara os artistas aos bobos da corte e, assim, encerra admiravelmente a sua crônica, como se vê:
-”A desculpa dada pela maioria, ou mesmo pela totalidade dos artistas, é que cumpriu a missão de denunciar a nudez do rei: julga-se a consciência da sociedade. É um consolo. Mas, no fundo, será sempre um bufão amargo.”
Antes de ir embora, pois o tempo urgia, fui de novo fazer pipi e me encontrei no caminho com a Gina, que ainda se mostrava encantada com o mimo que ganhara da Flor do 86 (Rosa viveu grande parte da sua vida na casa-biblioteca do patriarca dos Griecos, na rua Aristides Caire, 86).
Como Luca taxia como avião, antes de alçar voo, encontrei-o num buliçoso diálogo com meu irmão, participando o Vagner como ouvinte.
-O camarada disse que o Chico Buarque foi o maior compositor brasileiro do século XX. Ora, o Brasil teve carradas de excepcionais compositores: Chiquinha Gonzaga, Pixinguinha, Tom Jobim, Ernesto Nazaré, Noel Rosa...
-Claudiomiro, a Bibi Ferreira, que tem uns 90 anos de teatro, não disse que “Gota d' Água” é a melhor peça já escrita?...
Depois do Luca, eu poderia citar como exemplo de absurdo a eleição promovida na Europa, por uma publicação, na virada de 1999 para 2000, que considerou John Lennon o maior compositor do milênio, mas preferi ser mais conciso:
-Pessoal, é aquela velha verdade que se aplica: gosto não se discute, se lamenta.”

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