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quinta-feira, 15 de março de 2012

2113 - escapando do trio, com talento

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3913 Edição 10 de março de 2012

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74ª VISITA DOS ESCRITORES À MINHA CASA

-Sinto que José de Anchieta quer baixar aqui para ler o seu poema.

-Aquele que Netuno apagou?... Diga-lhe que agora não; falam mais alto os seus sermões.

Depois de uma pausa, quando o Padre Antônio Vieira se entendeu com o etéreo, ele voltou à realidade.

-Pronto, partiu. Disse-lhe que o Marquês de Pombal estava aqui.

-Voltemos à sua biografia, por favor. - pedi.

-Bem, em 1640, houve a Restauração da Independência de Portugal.

-É verdade; o desaparecimento do rei Dom Sebastião, na Batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos, provocou a decadência de Portugal e, durante oitenta anos, seu país esteve sob o jugo espanhol.

-Nossos países; não esqueça que as colônias portuguesas também passaram para o domínio da Espanha. - corrigiu.

E prosseguiu:

-Em 1641, com Portugal sob o reinado de Dom João IV, regressei a Lisboa, comecei a minha carreira diplomática integrando a missão que prestaria obediência ao novo monarca. Parece que Dom João IV gostou de mim, pois me nomeou embaixador e, posteriormente, pregador régio.

-Modéstia sua; ele notou logo a sua acuidade intelectual e o seu talento para a oratória. - intervim.

-Em 1646, ou seja, cinco anos depois, fui enviado pelo Rei de Portugal aos Países Baixos para negociar a devolução do nordeste do Brasil e, no ano seguinte, fui à França.

-Uma missão espinhosa. - falei sem atrapalhar a fluência da sua fala.

-Como eu lutava para obter ajuda financeira dos cristãos novos para a Coroa, desagradei mais uma vez o Santo Ofício. Vi, porém, fundada a Companhia Geral do Comércio do Brasil.

-Resumiu demais a sua função, Padre. - critiquei.

-Bem, eram muitas as minhas missões diplomáticas nos Países Baixos e na França; negociei Pernambuco, a paz europeia, o financiamento da guerra contra Castela e a futura Companhia Geral do Comércio do Brasil. Fiz ainda parte da embaixada portuguesa nas negociações da Paz de Münster, que tinha por objetivo encerrar a Guerra dos Trinta Anos. Em Ruão... e Amsterdam. Encontrei-me com representantes da comunidade judaica e negociei, para ira da Inquisição.

-O senhor não alimentava preconceitos contra os judeus. - assinalei.

-Em Portugal, eu desagradava a muitos com minhas pregações favoráveis ao povo hebreu, por esse motivo e outros, voltei ao Brasil como missionário no Maranhão e no Grão-Pará, de 1652 a 1661, defendendo mais ainda os indígenas.

-Não ficou aqui, no Brasil, esses nove anos seguintes?

-Não, parti em 1654 para Lisboa, antes, porém, proferi o “Sermão de Santo Antônio dos Peixes”, em São Luís, no Maranhão.

-A fama desse sermão se espalhou pelas terras de língua portuguesa.

E pedi:

-Diga-nos só o início dele, antes das citações latinas.

E ele me atendeu:

-”Vós, diz Cristo Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhe sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção, mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, sendo verdadeira doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma coisa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem que fazer o que dizem; ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si, e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes em vez de servir a Cristo, servem os seus apetites. Não é tudo isso verdade? Ainda mal.”

-É um admirável estilo barroco o seu. - falei.

-Embarquei para Lisboa, em 1654, num navio da Companhia de Comércio abarrotado de açúcar. Eu tinha, como missão, apresentar ao Rei os direitos dos indígenas escravizados contra a cobiça dos colonos lusitanos. Depois de dois meses de viagem, à vista da ilha do Corvo, a oeste dos Açores, uma violenta tempestade desabou sobre nossa embarcação. Na iminência do naufrágio, concedi absolvição a todos e bradei aos elementos da natureza em fúria:

-”Anjos da guarda das almas do Maranhão, lembrai-vos que vai este navio buscar o remédio e salvação delas. Fazei agora o que podeis e deveis, não a nós, que o não merecemos, mas àquelas tão desamparadas almas, que tendes a vosso cargo. Olhai que aqui se perdem conosco.”

-E como escaparam?- quis eu saber.

-Um navio corsário neerlandês recolheu os náufragos a bordo e pilhou a embarcação à deriva, antes de afundá-la. Depois de dez dias, quarenta e um lusitanos, entre eles eu, fomos largados na Ilha Graciosa, devidamente roubados dos seus pertences. Consegui com os religiosos da Companhia de Jesus, roupas, calçados e dinheiro para aqueles que me acompanharam nesse infortúnio. Nesse ínterim, consegui que Jerônimo Nunes da Costa fosse a Amsterdam e resgatasse meus papéis e livros tomados pelos corsários. Ele obteve êxito na sua missão.

-Foi um abalo e tanto. - supus.

-Não; dias depois, fui à Ilha de São Tomé e proferi o sermão de Santa Teresa, que muitos destacam como um dos meus melhores sermões.

-Seus problemas com o Santo Ofício tiveram uma trégua?

-Nada; fui desterrado para Coimbra e submetido a interrogatórios da Inquisição. Eles suspeitavam da minha simpatia pelo povo judeu e das minhas ideias messiânicas sobre o Quinto Império, do Sebastianismo.

E, em dúvida, perguntou:

-Era loucura?...

Eu o interrompi:

-Como disse o rei Dom Sebastião no poema épico de Fernando Pessoa:...”Sem a loucura que é o homem/ Mais que a besta sadia/ cadáver adiado que procria?”

-Na minha longa vida, ainda fui a Roma, onde sensibilizei o papa, que parou a Inquisição durante alguns anos. Em 1675, viajei de Roma a Lisboa munido de um Breve do Papa Clemente X, que me isentava “por toda a vida de qualquer jurisdição, poder e autoridade dos inquisidores presentes e futuros de Portugal.” Eu só permanecia sujeito à Cúria romana.

-A rainha Cristina da Suécia o convidou para ser seu confessor.

-Deus me livre! - persignou-se.

-Até completar os 89 anos de vida, o senhor muito agiu, muito escreveu... Foram 16 volumes dos seus sermões, e 3 volumes das suas cartas...

-Sim...

-Foi um estalo e tanto. - falei, antes de ele partir.

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