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segunda-feira, 26 de março de 2012

2118 - lembranças penduradas

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3918 Data: 22 de março de 2012

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O SABADOIDO DO RETRATO DAS RECORDAÇÕES

Antes de o Sabadoido, propriamente, se iniciar, a conversa seguia animada.

-Você vai viajar de novo a serviço, Carlinhos?

-Em fevereiro, Gina, fui a Macaé; no final de março, irei a Angra dos Reis.

-Você sempre viaja com mais de um colega, não é?

-Sim. Certa vez, entramos três no escritório de uma empresa, por coincidência, de Angra dos Reis e a filha do dono perguntou porque tantos, se um fiscalizava o outro.

-Perguntou mesmo, Carlão? - interessou-se o Daniel.

-Um dos meus colegas explicou que são ordens de Brasília: um fiscal, em ação, nunca pode agir sem a companhia de outro.

-Mas três?!... - estranhou a Gina.

-De fato, é um exagero, três são necessários para se vistoriar um porto, um terminal, mas empresa, bastam dois fiscais. É desperdício de dinheiro público.

-Isso na esfera de vocês, imagine nas esferas mais altas do funcionalismo público. - interveio o Cláudio.

E prossegui:

-Muitos dos meus colegas são sovinas, querem lucrar o máximo com as diárias, procuram, assim, espremer o máximo os gastos nessas viagens.

Gina me interrompeu:

-Quando o Daniel viajou com um colega dos Correios para Búzios, onde verificariam o sistema de informática da agência de lá, cada um ficou no seu quarto.

-Não quero homem por perto. - bradou meu sobrinho.

Retomei a palavra:

-Quando falam em dividir quarto, eu aviso: não vejo novela e não gosto de Big Brother Brasil. Se alguém ainda insiste, eu lanço meu argumento fatal: o ar condicionado me faz mal.

-Dividir quarto só para economizar uma mixaria... - criticou a Gina.

-Na Pousada em que ficamos, em Cabo Frio, tem o canal Film & Arts, na TV a cabo, ou seja, eu vejo óperas quando estou lá. Com um companheiro de quarto, eu causaria um choque cultural.

Apesar da empolgação da oratória, fui para o cybercafé do Daniel. Um pique de luz que ocorrera dois dias antes, onde eu moro, queimou a fonte, ou a placa-mãe do meu computador e eu precisava adiantar um texto do Biscoito Molhado.

Sem reparar nas palavras que apareciam no monitor de vídeo, deduzi que a revisão trabalharia como nunca.

-Parece que o Elio adivinhava quando pediu as contas. - murmurei.

O silêncio, que indicava que não havia ninguém por perto me tranquilizava, pois eu me sentia como no tempo em que digitava clandestinamente este jornalzinho com a senha do Dieckmann, no Departamento de Marinha Mercante.

Com a metade da edição digitada, calculei que, rabiscando a outra metade num caderno, eu digitaria tudo, no trabalho, em menos de uma hora e, assim, parei de escrever e fui abrir a minha correspondência virtual. Deparei-me, então, pela enésima vez com simpatias que trazem riqueza para o nosso bolso. Diziam que, depois de duzentos anos, cinco sábados cairiam num só mês, ou seja, março de 2012. Bastava que eu enviasse essa mensagem, segundo o remetente, para vinte pessoas, que a fortuna me sorriria. Só rindo... a fortuna não, que esta é carrancuda, eu é que riria.

Dieckmann me enviou um vídeo em que o cineasta lambe, com a câmera, uma Ferrari vermelha. As curvas do carro são mostradas com a paixão que Roger Vadim não teve quando filmou Jane Fonda na Barbarella (na sua autobiografia, ele confessou que antes da primeira relação com ela, broxou três vezes).

Sérgio Fortes me mandou a corrida pelo poder na Rússia. Vladimir Putin, de calção e camisa regata, partiu na pista de atletismo e, com um revólver em punho, impedia que seus adversários o ultrapassassem. Hugo Chaves, em Cuba, sentiria inveja.

Do quarto do Daniel, eu percebia uma espécie de terremoto na casa da Gina cujo epicentro vinha do local da sessão do Sabadoido, desde que o Luca chegara.

-Que novidade ele trouxe?... - fiquei curioso.

Ao rumar para lá, depois de guardar meu pendrive com o início do próximo número do Biscoito Molhado armazenado, cruzei com a Gina, na entrada da cozinha.

-Vai lá, Carlinhos, que o Luca está com o “enigma da esfinge” para você.

Inocentemente, pensei nas desventuras de Édipo, que o decifrou na antiga Grécia dos grandes artistas e falei sobre isso.

-Vai lá. - insistiu.

O “enigma da esfinge” nada tinha a ver com Sófocles. Luca tampou, com a palma da mão esquerda, uns dizeres à margem de um retrato de uma turma de alunos e professora e propôs a adivinhação:

-Quantos vocês identificam?

Eram crianças na faixa dos onze e treze anos de idade. Olhei, vi, perscrutei, e nada.

-A Gina acertou três. - tentou me provocar.

-Eu sou mau fisionomista. Se a irmã da Gina estivesse aqui, acertaria ainda mais.

-Claudiomiro não conseguiu reconhecer ninguém.

-Temos boa memória, mas não para rostos.

-Não vai tentar?... concedeu-me mais tempo para eu torturar a minha memória, mas, pelos bons serviços que ela tem me prestado, recusei.

-Esta aqui – apontou – é a Suzete.

Fixei minha atenção na figura da minha irmã e me lembrei de uma tia-avó.

-Você está aqui. - mostrou-me.

Era eu mesmo ainda com onze anos de idade. Enquanto eu me olhava mais do que Narciso, mas por motivos diversos, Luca me mostrou a Candinha, sua cunhada e dona do retrato.

-Como o Expedito pertencia à minha sala, na Admissão do Manuel Bomfim e era o maior da turma, é este aqui. - acertei por esse método, não porque eu me recordava do rosto do vizinho da Rua Chaves Pinheiro que fez a vida em Rondônia quando se tornou adulto.

-Esse pequeno álbum é de setembro de 1959. - falou o Luca.

Embora eu não me identificasse pessoalmente, guardava muitas reminiscências dessa época. Gostava da minha professora, talvez porque, depois de alguns anos escolares meus, ela seguiu com a turma do primeiro ao último dia de aula. Destacava-se no meio de nós, com seus vinte e poucos anos de idade. Era filha da dona do Colégio Piratininga, na Rua Hermengarda, que, hoje, é o Colégio Santa Mônica.

Minha irmã, que perdera um ano porque cursou o Colégio Coração de Maria, em 1954, era a mais alta da turma juntamente com o Expedito. Este estudava no extinto Colégio João Ribeiro, no Méier, hoje, agência do Bradesco. Um dia, disse-me que estudaria na minha escola, pois se desentendera na antiga (foi reprovado, na verdade). Na Escola Manuel Bomfim, apresentou-se como o nosso líder, e arrumou uma briga com um menino da outra turma da Admissão (Sérgio, que viria ser concunhado da Gina). Certa vez, fomos submetidos de surpresa a uma prova de religião. Expedito, prontamente, levantou o braço para fugir daquela situação.

-Não sou católico.

-Qual a sua religião?

-Sou espírita.

-Vai fazer a prova. - determinou a professora.

Na festa junina da escola, naquele ano de 1959, outra professora exclamou “Meu Deus”, quando parte das arquibancadas improvisadas caíram, mas ninguém se machucou.

Cláudio passou a falar em política, com o Luca, dando por encerradas as minhas reminiscências, no Sabadoido.

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