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sexta-feira, 2 de março de 2012

2105 - camelos e jegues consagrados

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3905 Data: 21 de fevereiro de 2012

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MAMUTE NO SABADOIDO

PARTE II

Quando cheguei à sessão do Sabadoido, olhei o Luca agarrado a um caderno com o mesmo fervor das beatas com os seus livros de missa.

-Carlinhos, no passado, todas as meninas tinham cadernos que compartilhavam com as amiguinhas.

Lembrei-me do questionário do petit Marcel Proust, mas não me manifestei, pois o grande escritor, quando menino, até se sentiu atraído pela filha de Charles Swann e Odette de Crécy.

-Glória (sua esposa), sempre muito cuidadosa, guardou o caderno e eu, furtivamente, o peguei e trouxe.

-Tem mais de 50 anos?

-Por aí, Carlinhos.

-Escreveram nele a Vera, irmã do Vagner, que morreria logo depois, a Lúcia, a Virgínia, a Marilinha, a Sandra, a Gina...

Ao pronunciar o nome da minha cunhada, sua expressão se tornou maliciosa:

-Eu já combinei com o Claudiomiro: vou mostrar os versos escritos pela Gina a ela, escondendo o nome com a palma da mão, depois pedirei para ela identificar a letra.

-Com a memória que possui, vai acertar. - previ.

-Ela está agora no telefone. - informou o Cláudio.

Vai demorar uma hora. - calculei sem nada falar.

Enquanto esperávamos, Luca se reportava ao meu achado de madrugada.

-Carlinhos, você pode abrir uma loja de celulares perdidos.

-Pois é, eu não era de achar nada, nem mesmo guarda-chuva depois da estiagem, mas de um tempo para cá, saio para as minhas caminhadas e encontro celulares perdidos pelo caminho.

-Como o Mamute me agradeceu!- enfatizou o Cláudio com o sorriso.

Nesse instante, a Gina se fez presente na sessão do Sabadoido. Luca se agitou ao vê-la.

-Gina, trouxe o caderno da Glória com as poesias que vocês escreveram nele.

Ela reagiu com uma quadrinha recitada de cor.

-Quando olho para o Latim,

Sinto uma coisa ruim;

Eu não gosto dele,

Ele não gosta de mim.”

Esses versinhos, certamente, chegaram-lhe aos ouvidos através dos veteranos do Visconde de Cairu, pois ela não estudou essa matéria que, a partir de 1961, não foi mais ensinada na nossa escola.

Fiz-lhe um pedido:

-Depois, escreva os versinhos para mim, vou dedicá-los ao Dieckmann. Diz ele que o Ministério da Educação e Cultura acabou com o Latim, em 1962, porque, como Churchill, ele não gostava dessa matéria.

-Gina, este caderno é anterior a esse tempo; vocês ainda aprendiam a escrever corretamente.

Depois dessa intervenção, Luca mostrou um poema à Gina e lhe pediu a identificação de quem o escreveu. Depois de muito pensar, ela desistiu.

-É da Sandrinha.

-Pensei nela, porque esse “p” é da caligrafia da Sandra.

-E quem escreveu esse poema? - repetiu o Luca o mesmo procedimento.

-Caramba, escrevi céu com “s”. - envergonhou-se.

-Você tinha uns 9 anos de idade, apenas.- defendeu-a o Luca.

-Idade suficiente para saber escrever céu. - brincou meu irmão com a expressão carrancuda de um professor implacável.

-Eu tinha um caderno desses; guardei-o até pouco tempo atrás.

-A Glória é muito caprichosa com as coisas do passado, ela guarda todas as cartas que escrevi para ela, que não sou poucas.

Reportei-me, então, a um jornalzinho de uma turma de formandos em Comunicação que entrevistou o humorista Jaguar, cujo fígado foi “tomado pelo patrimônio histórico”.

-Perguntaram ao Jaguar se ele guardou o Pasquim desde o primeiro número, ele respondeu que o único participante do jornal que fez isso foi o Ziraldo, porque pagou a um arquivista.

-Vou dar agora atenção à Kiarinha. - disse a Gina ao retirar-se.

-Hora de molhar a garganta. - ergueu-se o Cláudio da cadeira para ir à cozinha.

A atenção do Luca convergia, agora, para os livros, cartas e recortes de jornal da Rosa Grieco.

-Ela mandou este presente para você. - dizendo isso, passou às minhas mãos um livro de umas 400 páginas intitulado “Chopin em Paris”.

-Terei de resistir bravamente à tentação de não largar no meio o livro do Zuenir Ventura, sobre a inveja, para ler logo depois este. Aliás, essa obra do Zuenir Ventura se enquadra muito bem naquele pensamento do José Luiz Borges, que dizia que muitos romances ficariam bem melhores se fossem contos, ou seja, se o autor podasse algumas dezenas ou centenas de páginas.

Luca se deteve sobre uma carta que dirigiu à Rosa, baseada num artigo de revista em que o autor, trocando os nomes de Bernard Shaw e Oscar Wilde, o induziu ao erro, fato imediatamente captado pela filha caçula do feroz crítico literário Agripino Grieco.

Folheei o prefácio do livro, enquanto o Luca falava e me deparei com a passagem em que o escritor Alexandre Dumas Filho, depois de conseguir algumas cartas trocadas por Chopin e George Sand, entregou-as à ex-amante do compositor, sua grande amiga, que as queimou:

-Por que ela não agiu como a Glória?!... - lamentei.

Quando o Cláudio reapareceu com dois copos vazios até a metade, Luca bramia contra a má vontade da Rosa Grieco com os poemas de Carlos Drummond de Andrade.

-Li uma reportagem sobre os grandes críticos literários e cada um deles tinha uma idiossincrasia. O Agripino Grieco não é citado, mas não nutria atração pelo modernismo. Todos deveriam estudar os princípios básicos de literatura antes de julgar, conhecer, por exemplo, intertextualidade. Muitos que consideram a “pedra no meio do caminho” do Drummond ridícula, nem sonham que está relacionada a um poema de Olavo Bilac. - tagarelei.

Luca citou os versos da canção “Sabiá” do Chico Buarque de Holanda.

-São versos românticos que vêm da “Canção do Exílio” de Gonçalves Dias.

-”Canção do Exílio” que, por sua vez, se origina de um poema de Modest Mignon, de Goethe, pois Gonçalves Dias conhecia a língua alemã. - acrescentei.

Meu irmão apenas me olhou.

-Gonçalves Dias era muito ligado ao Pedro II. Ele até montou um dos quatorze camelos que o Imperador trouxe para o Ceará para substituir os jegues e desbravar o nordeste; e caiu.

Fui interrompido pelo Cláudio:

-Desse fato histórico, a Rosa Magalhães criou, em 1995, na Imperatriz Leopoldinense o enredo “Mais vale um jegue que me carregue do que um camelo que me derrube”.

E pôs-se a cantar o longa samba-enredo sem esquecer uma passagem.

-No fim, a consagração do jegue, que carrega D. Pedro I quando ele dá o grito do Ipiranga.

-Sim, porque aquele quadro do Pedro Américo é mentiroso, - afirma o Luca, que leu 1822 de Laurentino Gomes.

-A Rosa Magalhães recorreu à frase do Gil Vicente; quando o acusaram de plagiar o teatro espanhol, ele retrucou: “Mais vale asno que me leve que cavalo que me derrube.” - manifestei-me.

-Kiara, hora de ir embora. - gritou o Luca.

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