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sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

2080 - papo de adega

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3880 Data: 12 de janeiro de 2012

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O PRIMEIRO ALMOÇO DO ANO

Eu tinha de entregar a gravação em DVD de um documentário do canal Film & Arts sobre a vida de Van Gogh, através das mais de 900 cartas que redigiu. O assunto, quando nos encontramos, no entanto, não foi pintura, nem mesmo orelhas humanas arrancadas. Conversamos sobre o almoço da última quinta-feira, na Adega do Pimenta, o primeiro da turma no ano.

-Poxa, Carlos, você não foi?...

-Bem, Elio, depois que o Dieckmann passou a ser o único motorneiro de Santa Teresa após aquele acidente com mortes com o bonde...

-O próprio Dieckmann foi ao almoço de ônibus. - informou.

A surpresa se estampou no meu rosto.

-O 206, Carioca-Silvestre serve para ele vir aqui.- acrescentou.

Meu espanto persistia.

-Dieckmann andando de ônibus?!... Isso é uma grande surpresa para mim como seria para o Sérgio Nei.

-Pois é, Carlos, o nosso colega do Colégio Militar sempre pensou que o Dieckmann, por não ser da esquerda, não entrava em ônibus.

-E o Skipper, Fischberg?

-Compareceu ao almoço, Carlos. - deixou-me de novo espantado.

-Depois dessa, eu vou comprar ingresso para o próximo show do João Gilberto. - reagi.

-Vou citou bem o João Gilberto, pois o Skipper trata o Volkswagen dele como se fosse um artista.

-O Volkswagen, cor de café com leite, dele é como se fosse um violão.

-Eu diria mais, Carlos: um violino Stradivarius. Ao chegar, ele bateu a porta do Fusca como se estivesse com um Stradivarius poído nas mãos: usou só o polegar.

-O carro dele foi dirigido pelo Ferdinand Porsche?

-Apesar de ser do início da década de 70, é como se fosse.

-O Fusca dele é contemporâneo do SW 3200 do Luca.- lembrei-me.

-Carlos, eu não aconselho a fazer semelhantes comparações porque os colecionadores de carro têm umas sensibilidades que nós desconhecemos.

-Pelas informações que você colheu, Causídico, deduzo que você chegou na frente de todos, o que se constitui na maior surpresa, entre tantas, do almoço.

-Nada; recolhi essas informações das conversas que houve entre nós, enquanto aguardávamos os pratos e comíamos.

-Você chegou, então, depois do Tio Frank, ou Skipper para os menos íntimos.

-Cheguei depois da Branca.

-A Branca foi?!... Ninguém a citou nas trocas de e-mails sobre os possíveis comensais.

-Carlos, ela não estava no programa, pelo menos no programa original, mas o Dieckmann, sabemos todos, está sempre fazendo média. Branca se sentou e começaram um papo animado, de vez em quando interrompido por um som onamatopaico do Skipper.

-Qual?

-RÁ.

-O Volkswagen do Tio Frank foi tratado como um Stradivarius... - relembrei de modo titubeante.

-O cabelo curto e branco lhe acentua um ar senhorial assim, quando estacionou num recuo da rua, o guardador de carro da região se afastou e nem pensou em voltar atrás. Skipper era o barão que chegava, se não era Barão, era Visconde, no mínimo. Entrou na Adega do Pimenta e sentou lá no fundo.

-Você, pelo que vejo, apareceu por último.

-Carlos, eu reconheço o meu atraso, estava mais atrasado do que a Marilyn Monroe, mas continuei no meu ritmo.

-Ou seja, Elio, você não alterou a sua passada, tal qual um antílope que sabe que o leão não o alcançará.

-Percebi, pelo rosto crispado do Causídico Verborrágico, que a comparação não o agradara muito.

-Carlos, quem caça é a leoa. Se leio isso no Biscoito Molhado, sou abrigado a agir como revisor e corrigir para: “... não alterou a sua passada, tal qual um antílope que sabe que a leoa não o alcançará.”

-Elio, a questão aqui é literária: é melhor para o nosso currículo ser perseguido pelo leão do que pelo seu harém.

-Antílope... - resmungou como o animal que estava ficando em segundo plano.

-E como estava o Tio Frank no almoço?- demonstrei a minha curiosidade de ausente compulsório ao evento.

-Ouvimos as suas últimas aventuras médicas.

-Então, foi alguma coisa que se reportou ao “Ben Casey” ou “Ao Jovem Dr. Ricardo” da televisão dos velhos tempos.

-Carlos, são aventuras de alto risco e praticadas no abismo abissal, como um bungee jumper sem elástico.

-Tio Frank superará os obstáculos.- expressei esperança.

-De pulo em pulo, a conversa, no almoço, mudou para o Ceará, onde o Skipper foi com a mulher conhecer a sua família. Dormiu na maior rede da cidade e viu, às seis da tarde, uma escuridão que realçava os belos traços de cada uma das primas da mulher. No dia seguinte, alegando dores na coluna, partiu antes que iniciasse um harém, digo, uma confusão de doses equatoriais.

-Imagino o Tio Frank na terra de Iracema, a virgem de lábios de mel, contemplando as beldades do lugar... Coisa para um escritor do talento do José de Alencar criar um romance.

Nesse ponto do nosso diálogo, Elio Fischberg se ateve à atuação do garçom:

-Chegaram os pratos e o silêncio reinou enquanto se serviam.

-Quando falo em restaurantes de comidas saborosas, Elio, a Adega do Pimenta sempre me vem à mente.

Sem dar muita atenção ao meu aparte, ele prosseguiu:

-Um pouco incomodada com a falta de conversa momentânea, Branca esclareceu a boa moda do Jazz, em Santa Teresa, com seu estilo bem detalhado.

-Assisti a uma série de quase vinte capítulos de 50 minutos sobre a história do Jazz, no canal Film & Arts, recentemente e gostaria de trocar ideias com a Branca sobre os três grandes inovadores desse gênero musical: Louis Armstrong, Charles Parker e Miles Davis.

Elio continuou:

-Branca manteria o domínio da conversa se não fosse a chegada de uma mesa vizinha, em que sobressaía uma vasta senhora, que emudeceu não só a Branca, como toda a Adega.

-As pessoas espalhafatosas se fazem presentes em todo lugar.- critiquei.

-Passado o susto com a mesa vizinha, as conversas espocaram de cada lado.- contou.

E Elio se deteve nessas conversas:

- Skipper relatou que o custo de suas próximas incursões em busca de um transplante o fará reduzir o número de Fuscas de sua propriedade, no que o Dieckmann apoiou efusivamente, dizendo até que poderia tratar de vender os Fuscas sem se desfazer do rim. Depois, ainda com gracinhas, falou de um presente de casamento – trote certamente e que foi além da conta, pois o Skipper interrompeu o relato com um grande f... ficou provado que eles se conhecem há bom tempo.

-Elio, você falou das costureiras da Lapa, o que, certamente, iria coroar o entusiasmo juvenil do Skipper?

-Não, também não tratei dos domínios dos judeus das cercanias da Rua de Santana, perto da Praça 11 de Junho, onde a maior parte da comunidade judaica residia e trabalhava. Prato cheio de detalhes da sociedade dos anos vinte aos quarenta, infelizmente pouco recheada de automóveis, o que desapontaria o Skipper.

-Eu julgava que o Carlos Alberto Torres, o grande Capitão, comparecesse ao almoço.- falei.

-Quando passamos a tratar dos ausentes, falamos especialmente dele. Contaram sobre sua última coleção, de espremedores de laranja e de limão, de louça e de vidro, diagnosticando um fim preocupante para a sua liberdade de gastar, visto que a família do Capitão certamente o interditará. Relatei que, por muito menos travessuras, inúmeros pais de família ficaram reduzidos ao casa-trabalho-casa, sem hobbies ou diversões, até que o pó da rotina os invalidasse para o prazer. Quando iam falar de você, o Distribuidor pediu a conta, pois tinha de trabalhar. Ou marcar ponto. Ou os dois.

E concluiu: Dieckmann saiu de lá dando vivas aos taxistas de Maria da Graça, pois não havia um táxi em Santa Teresa na hora de ir embora.

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