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quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

2061 - checando Tchekhov

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3861 Data: 10 de dezembro de 2011

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71ª VISITA DOS ESCRITORES À MINHA CASA

-Anton Tchekhov, você não morre tão cedo: acabo de citar uma frase sua: preciso espremer gota a gota a mentalidade de meu sangue para amadurecer como indivíduo.”

-É claro que não morro tão cedo; morri em 1904.

-Ilustrado como você era, superou isso, mas o povo russo não se firma como cidadão. Falam que o russo só se sente bem batendo ou apanhando.

-Nasci em 1860, um ano antes do término da servidão na Rússia. Meu avô foi um servo da gleba, comprou a liberdade quando meu pai tinha 16 anos de idade. Falam, então, que sou neto e filho de servos.

E perguntou, depois de uma pausa:

-Você sabe como é servo na minha língua?

-Infelizmente, não.

-Cech. Meu pai era muito apegado às coisas religiosas, foi dirigente do coro da Igreja. Ele me colocou numa escola religiosa. Eu era acólito,coroinha, acompanhante dos padres, na missa. Como eu não atentava para as aulas, um padre me chamava desdenhosamente de cech. Quando publiquei meus primeiros contos nos jornais, usei ironicamente o pseudônimo Antosa Cechonte.

- Anton Tchekhov se tornou Antosa Cechonte.

-Isso.

-Mas seu pai, apesar de extremamente autoritário com os filhos, procurou dar-lhes a melhor educação.

-Sim; fomos para os mais destacados liceus de Taganrog; aprendemos francês e música.

-Pável Tchekhov...

-Seu pai...

-Sim, meu pai. Ele fez um estágio de três anos como comerciante; tornou-se depois servente e contabilista. Três anos antes de eu nascer, 1857, conseguiu ser dono de uma mercearia. Com a derrota russa na Guerra da Crimeia, foi imposta a desmilitarização do Mar Negro pelos ingleses e franceses, e meu pai perdeu seus melhores fregueses: os militares. Meu pai recorreu a um bar, que adaptou à mercearia, e que as autoridades toleravam entre um gole e outro.

-O seu pai era um lutador.

-O seu arrojo empanava, por vezes, o raciocínio. Quando eu tinha 14 anos, ou seja, em 1874, ele decidiu comprar uma casa maior. Fez isso, ao mesmo tempo em que alugava uma segunda loja.

-Você julga, então, que ele não raciocinou nessa hora?

-Era o desejo de ascensão social, que apagaria todas as humilhações passadas, que o guiava.

-Ele se afundou em dívidas com essa imprudência econômica.

-Sim; temendo a prisão por endividamento, saiu de Taganrog para Moscou, ilegalmente, onde dois filhos dele já estudavam: Aleksandr e Nikolaj.

-Seus irmãos?

-Sim. A minha mãe permaneceu em Taganrog para vender a casa e sanar as dívidas.

-Li, recentemente, um conto seu em que um feliz casal recém-casado compra uma propriedade. Eles têm de fazer uma reforma e tanto na casa para apagar o sofrimento dos antigos proprietários.

-Lembro-me: “Desgraça Alheia”. Terminei o conto com a seguinte frase: “Era preciso pintar, colar e quebrar muita coisa a fim de esquecer a desgraça alheia.” Eu não devia lambuzar o meu texto com pieguices.

-E sua mãe se saiu bem da incumbência?

-Cumpriu as ordens do marido e partiu para encontrá-lo em Moscou. Ficamos em Taganrog eu, com 17 anos, e meu irmão, Michail, com 16, porque ainda não tínhamos terminado o liceu.

-Um mérito ninguém pode tirar de Pável Tchekhov: ele nunca descurou do ensino dos filhos. - enfatizei.

-Depois, Michail partiu para Moscou, e eu fiquei: dava aulas particulares para ganhar dinheiro, enquanto aprendia. Mantive-me sozinho em Taganrog por dois anos e meio, enquanto as minhas notas escolares melhoravam consideravelmente.

-E a solidão o ajudou a cultivar seu espírito, presumo?

-Lia Shakespeare, Cervantes, Victor Hugo, Leon Tolstoi, Harriet Beecher Stowe, Turgeniev. A minha fascinação pelo teatro recrudescia. Era proibida a entrada no teatro de crianças desacompanhadas, por isso, com treze anos de idade, disfarcei-me de adulto, com uma barba postiça,

-Era um anão atraído pelo mundo teatral.

-O diabo é que os anões são muito observados.

-Apesar do seu amadurecimento, a sua família aceitou que você ficasse tanto tempo distante?

-Minha mãe escreveu que eu vendesse a cômoda e tudo o que precisasse para custear a minha viagem a Moscou, pois morria de angústia.

-Em 1879, reencontrei a minha família. A situação financeira era precária: meu pai estava desempregado, e a dificuldade para pagar o aluguel era gritante. Em 3 anos, 1876 a 1879, minha família foi obrigada a se mudar doze vezes.

-Li alhures que o compositor Mozart se mudou, com mulher e filhos, nove vezes, em um ano. - interrompi.

-Se isso é verdade, não sei onde encontrava tanta inspiração, pois as mudanças são dolorosas.

-Com a sua chegada a Moscou, as coisas melhoraram para a sua família?

-A princípio, não, pois era mais um a ocupar o já exíguo espaço da casa. Porém, eu trouxe sorte, pois me pai conseguiu, finalmente, um emprego com a vantagem de dormir no local do trabalho.

-Era vigia?

-Falei em vantagem porque a nossa casa ficaria aliviada de mais um ocupante. Dormir no trabalho significava mais suor derramado pelo meu pai. Nos fins de semana, ele visitava a família. Eu partilhava o quarto de dormir com meus irmãos Nicolai e Michail, mas sempre encontrava um canto para estudar.

-E quando você chegou aos 20 anos de idade?

-Em 1880, nesse ano, decidi que não entraria mais no teatro como membro da plateia.

-Disfarçado com uma barba postiça, como se fosse o Toulouse Lautrec... - brinquei.

-Resolvi adentrar os teatros como dramaturgo, e escrevi um drama que chamei de “Os sem-pais” ou Platonov, o nome do protagonista.

-Escreveu em Moscou?

-Na verdade, eu já deixei tudo alinhavado em Taganrog, em Moscou só fiz a última revisão.

-E a peça?

-Entreguei-a a famosa atriz Marija Ermoloja. Ela me devolveu sem qualquer comentário.

-Não leu, provavelmente.

-Não sei se leu, mas me senti arrasado. Naquele momento, desisti de tentar a encenação de qualquer obra para o palco.

-Mal sabia essa atriz que desdenhou o futuro autor de “A Gaivota”, “Tio Vânia”, “As Três Irmãs”, “O Jardim das Cerejeiras”. São grandes obras da dramaturgia. - manifestei-me.

-Você sabe o que meu amigo Leon Tolstói me disse, certa vez?

-Conte. - inflamou-se a minha curiosidade.

-”Você sabe – disse-me Tolstói – que eu não gosto dos dramas de Shakespeare, mas os seus são ainda piores.”

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