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O BISCOITO MOLHADO
Edição 3877 Data: 05 de dezembro de 2011
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70ª VISITA DOS ESCRITORES À MINHA CASA
-Selma Lagerlöf?!... espantei-me com a visita da ilustre escritora sueca.
-Reconheceu-me?... - não ocultou a ironia.
-Eu a vi pintada por Carl Larsson.
-Ele me enalteceu com todas as cores da sua palheta.
-Os pintores inventam cores que vão além do arco-íris, como a fúcsia, porque têm as suas razões.
-Eu vim de tão longe porque fui chamada.
Ao dizer as palavras acima, Selma Lagerlöf, tirou um recorte de papel e leu: Aristisdes Caire, n° 86.
-Ah, sim, Rosa Grieco a evocou.- disse-lhe.
-Fui a esse endereço e nada encontrei.
-Na Aristites Caire, n° 86, havia mais de 40 mil livros e histórias dos seus moradores que dariam outros 40 mil livros. Você, certamente, teria assunto para vários romances.
-Contento-me com os livros que escrevi, quando viva.
Rosa Grieco manuscreveu uma carta sobre o inconformismo dela com o fato de não a citarem mais, de a relegarem ao esquecimento.
-Mas existem tantas celebridades medíocres. - reagiu a escritora sueca, conformada.
-Por existirem tantos medíocres na mídia, devemos repercutir os feitos dos talentosos.
-Você, por exemplo, não tem lido nada sobre mim?... Não vou perguntar nem pelos meus livros.
-Para ser sincero, ouvia falar em Selma Lagerlöf, na minha adolescência. Depois, não vi seus livros editados e não topei com um deles sequer nos sebões. É claro que não sou um paradigma de leitor.
-E a Rosa Grieco é?...
-Sim, ela lê uma média de quatro livros por semana. Pena que o seu interlocutor seja eu e não ela. Rosa Grieco exclamaria: “dommage!”
-Ela é francófila?... Lembre-se que a Suécia colocou no trono, ao seu talante, um marechal de Napoleão Bonaparte e nós nos demos muito bem com a dinastia Bernadotte.
-Rosa Grieco é francófila, anglófila, germanófila, eslavófila, latinista... Como eu disse, é uma leitora compulsiva, e reclamou que a catapultaram para o esquecimento, porque há décadas nada se fala a seu respeito.
-Eu me conforto com os poucos, no Brasil, que ainda sabem alguma coisa sobre mim.
-Você nasceu em Estocolmo?
-Nasci em 1858, no lado oeste da Suécia, na província de Värmland, na propriedade que meus pais administravam: Marbacka.
Como ela enfatizara o nome Marbacka, perguntei-lhe como era.
-Era uma fazenda situada numa região prenhe de mitos, lendas e histórias de fantasmas.
-E seus pais?
-Meu pai era o tenente Erik Gustaf Lagerlöf, e minha mãe, Luísa Wallroth, era filha de um rico industrial da região. Meu pai era alegre, engraçado e diferente.
-Sua infância foi, então, feliz.- concluí.
-Nasci com um defeito articular na perna esquerda e, com três anos de idade, vi-me impedida de andar. Passei a infância sem brincar muito, mas, em compensação, ouvi muitas histórias e lendas contadas pela minha babá, Kaysa. Eu não corria, voava com a imaginação.
-Estava sendo cultivado o talento da futura escritora. - aparteei.
-Num determinado verão, eu viajei com minha família para uma estação de águas, em Strömstad. Conheci a esposa do capitão do navio Jacob, que me convidou para conhecer a embarcação. Lá, eu vi a ave do paraíso, foi uma epifania, levantei-me para acompanhar o seu voo até o infinito e andei.
-Ficou curada?
-Voltei a andar como nos primeiros anos de vida, mas ainda claudicava da perna esquerda por causa das dores.
-Você ainda era uma menina?
-Sim; mas com 15 anos de idade, depois de consagrar toda a minha infância à leitura, passei a escrever. Foram milhares de versos, muitos deles toscos, mas o início tem de ser assim.
-Todos os grandes autores queimam etapas, até mesmo Mozart.- declarei.
-Em 1880, quando eu estava com 22 anos de idade, a situação financeira da minha família entrou em declínio.
-O que prejudicou a sua atividade literária?...- deduzi.
-Com a ajuda financeira do meu irmão Johan, entrei para uma escola feminista de formação de professoras. Concluí os estudos com 27 anos de idade e fui nomeada professora de História em Landskrona.
-E assombrou como professora de História?...
-Eu assombrei a todos mesmo quando cortei os meus cabelos de tranças, Meu gesto foi visto como escandaloso, como um sinal de emancipação feminina.
-Você mostrou que não era a boneca da peça de Ibsen.
-Bem lembrado: nessa época, o Henrik Ibsen escreveu “A Casa das Bonecas”.
-Mas voltemos a falar de você.
-Em 1885, meu pai caiu doente, e meu irmão se afundou em dívidas. Perdemos, então, Marbacka.
-A fazenda onde você nasceu.
-Jurei comigo mesmo que a recuperaria com o meu trabalho.
-Para uma mulher, não seria fácil, com todo a sua aptidão para a literatura. - manifestei-me.
-Ajudada pela baronesa Sophie Lejonhufvud, dona da revista literária Dagny, publiquei meus versos. Em 1890, participei de um concurso de contos e ganhei o meu primeiro prêmio em dinheiro. Publiquei o romance “Saga de Gösta Berling” e, depois, escrevi outro livro de contos, “Laços Invisíveis”.
-Em que ano você está? - procurei me situar.
-Em 1894, quando, em Estocolmo, conheci a escritora de romances históricos, Sofia Elkan, minha amiga para toda a vida. Em 1897, lancei “Os Milagres de Anticristo”, considerado, na Itália, uma crítica ao socialismo siciliano.
-Você já era, então, uma escritora de repercussão internacional.
-Sobre o tema de “A Bela e a Fera”, redigi “Lenda de uma Quinta Senhorial”. Com o nascimento do século XX, viajei pelo Egito e pelas terras santas e escrevi, entre 1900 e 1902, os dois volumes de “Jerusalém”. Em seguida, vieram “Escudos do Senhor Arne”, “As Lendas de Jesus Cristo” e “O Livro das Lendas”.
-Imagino que o seu nome de escritora já estava consolidado no mundo literário.
-O diretor da escola de Husqvarna, Alfred Dalin, propôs que eu ensinasse história e geografia da Suécia às crianças das escolas de ensino fundamental através de um livro. Depois de muita pesquisa e de extensas viagens de estudo, concluí, entre 1906 e 1907, “A maravilhosa viagem de Nils Holgersson através da Suécia”. Com o sucesso que obtive, pude readquirir Marbacka, em 1910.
-Depois de 15 anos.- calculei.
-Eu tinha de retornar a casa onde nasci.
-Você foi a primeira escritora a receber o Prêmio Nobel de Literatura.
-Concederam-me o Prêmio Nobel de 1909. Prudhome recebeu o de 1901; Frederick Mistral o de 1904; Sienkiewicz o de 1905; Kipling, o de 1907; Tagore o de 1913; Rolland, o de 1915; Anatole France o de 1921; Yeats, o de 1923; Bernard Shaw o de 1925... Houve alguns acertos e algumas injustiças. - disse ela.
-A fama e o sucesso não a fizeram esquecer a pena?
-Não, escrevi até morrer, em 1940, em Marbacka.
Peguei um texto e li:
-A literatura sueca era dominada pelo realismo naturalista, com Selma Lagerlöf e sua obra, impregnada de gnomos, duendes e fantasmas, recriou a atmosfera das lendas e relatos populares.
-E concluí:
-A Rosa Grieco tem toda razão de pedir o retorno das suas obras literárias às livrarias.
Selma Lagerlöf se limitou a sorrir.
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