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O BISCOITO MOLHADO
Edição 3868 Data: 23 de outubro de 2011
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67ª VISITA DOS ESCRITORES À MINHA CASA
-Charles Chaplin, que surpresa!...
-Quem é morto, sempre aparece. - pilheriou.
-Como os críticos nunca descansam a língua, devo assinalar que você, além de ator, diretor, roteirista, distribuidor, mímico, dançarino, compositor, etc, etc, foi escritor.
-Ah, a entrada aqui só é permitida aos escritores. Escrevi a minha autobiografia; para isso, interrompi o meu trabalho de compor músicas para os meus filmes mudos.
-Dizem que alguns escritores enviaram as suas obras póstumas através de médiuns, Chaplin.
-Parece que Victor Hugo fez isso com “Do Calvário ao Infinito”, que eu não li.
-Um crítico brasileiro, Agripino Grieco, sobre esses livros póstumos, disse, ironicamente, que a morte diminui a criatividade,
-É verdade; eu tinha 63 anos quando filmei “Luzes da Ribalta” e, no papel, do velho comediante Calvero, eu deixo registrado que o tempo era o meu maior inimigo.
-Você era filho de artistas?
-Meus pais eram artistas de music-hall. Meu pai atuava como vocalista e ator, minha mãe, cantora e atriz. Nasci em Londres e aprendi a cantar com eles, que, no entanto, se separaram mal eu tinha completado 3 anos de idade. Eu e meu meio-irmão ficamos, a princípio, com mamãe.
-Ela já se mostrava emocionalmente instável?
-Meu pai bebia tanto que não era, também, um modelo de lucidez. Quanto à minha mãe, para agravar o seu distúrbio emocional, teve um problema de laringe. Lembro-me muito bem da sua primeira crise, foi em 1894.
-Você tinha 5 anos de idade.
-Ela cantava no “The Canteen”, um teatro de Aldershot, frequentado por soldados e arruaceiros. A sua voz falhou e a plateia apupou sem dó nem piedade. Atiraram objetos sobre ela, alguns a machucaram. Eu a vi nos bastidores chorando e se explicando com o gerente da casa, não pensei duas vezes: subi sozinho ao palco e cantei uma música popular da época, “Jack Jones”.
-Um pinguinho de gente acalmou aquela turba.
E, em seguida, lamentei:
-Pena que não foi filmado.
-O cinema não existia ainda. - sorriu Charles Chaplin.
-A saúde mental da sua mãe piorou?
-Ela foi internada no Asilo Cane Hill, em Coulsdon, com isso, eu e meu meio-irmão fomos morar com meu pai alcoólatra e sua amante, Louise. Nós moramos na 287 Kennington Road. Apesar da minha estada lá ter sido por um período meteórico, está lá, ainda hoje, uma placa comemorativa. A substituta da minha mãe me enviou para o Archbishop Temples Boys School. Em 1901, quando eu estava com 12 anos de idade, o meu pai morreu de cirrose.
-No seu filme de 1921, “O Garoto”, você mostra algumas das agruras que passou: orfanatos, albergues noturnos...
-A minha vida está nos meus filmes. Algumas pessoas reclamam do excesso de drama, mas eu, que o sofri na pele, não reclamei.
-Com o Surgimento da Revolução Industrial, na Inglaterra, o ser humano ficou esmagado e se deu uma reação. Os intelectuais defenderam políticas de bem-estar social, e se construíram orfanatos, albergues, hospitais, escolas dominicais...
-Dormi em muitos albergues.
-Fosse você um brasileirinho que perde o pai com 12 anos de idade, por excesso de álcool e que tem a mãe internada num asilo de perturbados mentais, o seu caminho no mundo do crime estaria traçado.
-Enviaram-me para uma escola para pobres, o Central London District of School. Contudo, eu me sentia atraído pelo music-hall.
-O seu grande momento, até então, foi a sua apresentação, com cinco anos de idade, cantando para um público hostil.
-Todas as hostilidades cessaram.
-E como você começou no mundo artístico como profissional?
-Eu disse, no “Luzes da Ribalta”, como Calvero, que somos todos amadores.
Depois desta ressalva, prosseguiu:
Entrei para a trupe do Fred Karno e, em 1910, realizamos uma turnê pelos Estados Unidos. Depois de cinco meses na Inglaterra, retornei com a mesma trupe, em 1912.
Foi quando você dividiu um quarto de pensão com Stan Laurel, o magro da dupla “O Gordo e o Magro”?... Ele era excelente comediante.
-Stan Laurel retornou a Inglaterra no fim da temporada, eu permaneci porque o cinema florescia com um vigor impressionante.
-Lá por
-Fatty Arbuckle era chamado, no Brasil, de Chico Boia. O escândalo, com morte, em que se viu envolvido, acabou com sua carreira.
-Mack Sennet me contratou para o seu estúdio, a Keystone Film Company e, em 1914, atuei no meu primeiro filme, “Making a Living”.
-A sua estreia não foi auspiciosa.
-Era um mundo inteiramente novo para mim. Senti uma árdua dificuldade em me adaptar ao estilo de atuação da Keystone.
-Disseram que Mack Sennet só não o despediu porque Mabel Normand, a grande atriz, interveio a seu favor.
-Passei a trabalhar com ela que, além de dirigir, escrevia meus primeiros filmes. Não gostei, evidentemente, disso.
-Mas teve de engolir porque, além de estrangeiro, era novato.
-Ainda assim, discutia frequentemente com ela. O sucesso que eu obtinha com os filmes garantiam a minha posição.
-O maior personagem artístico do século XX, “O Vagabundo”, surgiu no seu segundo filme, ainda em 1914, “Kid Auto Races at Venice”?
-O nome do filme já fugia da minha memória...
-”O Vagabundo” recebeu o nome de “Carlitos” no Brasil e na Argentina; “Charlot”, na França, na Itália, na Espanha, em Portugal, na Grécia, na Romênia, na Turquia; Der Vagabund, na Alemanha. The Tramp na Inglaterra e nos Estados Unidos.
Charles Chaplin retomou a palavra.
-Na verdade, eu já havia criado o visual do personagem para o filme “Mabel's Strange Predicament”, dias antes do “Kid Auto Races at Venice”, mas ele foi lançado depois.
-O Vagabundo é um andarilho sem dinheiro que possui os gestos dignos e refinados de um cavalheiro. Ele se veste com um paletó apertado, calças largas, calça sapatos enormes, usa chapéu de coco, carrega uma bengala de bambu e tem um pequeno bigode de broxa. De onde veio a inspiração?
-Você não se reportou aos anos duros da minha vida?... Não seria a fortuna que eu ganhava nos Estados Unidos que o apagariam da minha alma.
-Nos primeiros filmes, o Vagabundo atacava agressivamente seus inimigos com chutes e tijolos, o público adorou o personagem, mas a crítica alertou que as travessuras do personagem beiravam à vulgaridade.
-Sim, mas quando eu passei a dirigir e a editar meus próprios filmes, o meu personagem melhorou.
-Quanto a isso, não há a menor dúvida, Carlitos.
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