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sexta-feira, 14 de outubro de 2011

2029 - iluminados

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3859 Data: 06/10/2011

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64 ª VISITA DOS ESCRITORES À MINHA CASA

-Bob Fields, é uma alegria recebê-lo em minha casa.

-Bob Fields... - sorriu.

-Deixando a brincadeira à parte: quem o apelidou tão maldosamente?... Uns dizem que foi o Millor Fernandes, outros, o Sérgio Porto.

-A esquerda nunca chega a uma conclusão mesmo para assuntos simples. - concluiu para, em seguida, responder.

-Em 1958, eu era secretário do Conselho de Planejamento do governo, quando recebi um telefonema da Presidência da República.

-Juscelino Kubitschek lhe telefonou? - interrompi.

-Convocaram-me para uma reunião de emergência. O problema vinha da Bolívia; o Brasil corria o risco de perder concessões na exploração de petróleo lá, porque eles passariam a não admitir mais empresas estatais.

-Há poucos anos os bolivianos invadiram os campos de exploração da Petrobras. A coisa é antiga e não é só com o Brasil.

-Eles se meteram com a poderosa Inglaterra vitoriana. Como as balas de canhão não alcançavam La Paz, por causa da altitude, a Rainha Vitória declarou a inexistência da Bolívia. - enveredou Roberto Campos pela história com um riso irônico.

-E, então, o presidente Juscelino estava com esse problema... - apresentei-lhe o gancho para retornar à narrativa.

-Indiquei o caminho a ser seguido: a Petrobras se associaria a empresas americanas, num contrato de risco e, assim, contornaria o obstáculo. O advogado Nehemias Gueiros, que participava da reunião, para zombar da minha ideia fez a tradução literal do meu nome. Os esquerdistas repercutiram ao infinito o “Bob Fields”. No meu livro de memórias, eu registrei o mal que este apelido me trouxe.

-Um livro de memórias com um título de mestre: “A Lanterna na Popa.”

-Méritos para o grande poeta Samuel Taylor Coleridge, que viveu de 1772 a 1834, e escreveu estes versos:

“Mas a paixão cega nossos olhos,

e a luz que a experiência nos dá é a

de uma lanterna na popa, que ilumina

apenas as ondas que deixamos para trás.”

-Sim, mesmo idoso, a paixão ainda cega nossos olhos. - disse.

-Na página que podemos denominar de epígrafe da sua autobiografia, você cita outro poema.

-Poema de João Cabral de Melo Neto, meu colega de Itamaraty. Cito-o de cor:

“Sempre evitei falar de mim,

falar-me. Quis falar de coisas.

Mas na seleção dessas coisas

não haverá um falar de mim?”

-Entre os dois poemas, estava uma citação de Guimarães Rosa, outro diplomata. - lembrei.

E Roberto Campos reproduziu a frase de “Grandes Sertão: Veredas”:

-”Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e se abaixa.”

-Quando você fez prova para o Itamaraty?

-Passei no concurso do Itamaraty em dezembro de 1938 na sétima colocação. Senti-me mentalmente humilhado com esse sétimo lugar, pois estava acostumado, desde o seminário, à primeira colocação. Essa frustração foi atenuada quando eu soube que todos os classificados à minha frente eram repetentes do concurso, ao contrário de mim. Julguei ter realizado uma ótima prova de Direito Internacional Privado e tirei nota baixa; com o meu colega, Carlos Alfredo Bernardes, o Lolô, aconteceu exatamente o contrário. Imaginei que houvessem trocado as notas, mas não pedi revisão de prova.

-E eu que dizia que você foi o nono colocado... - confessei.

-Nós, os concursados de 1938, formamos uma turma conhecida como o grupo dos 18 do Forte

-Você saiu da pensão da Rua da Relação e foi para o Butantã da Rua Larga.

-São cobras, mas fingem que são minhocas. - dizia-me de seus colegas o admirável Guimarães Rosa, que depois se tornaria meu escritor preferido.

-E tudo correu bem para vocês do grupo dos 18 do Forte, no início?

-Nada. O presidente Getúlio Vargas nomeou, sem concurso, cerca de 13 novos diplomatas, alguns deles auxiliares de carreira e outros, meros apaniguados políticos.

-O ano de 1938 terminava. - falei em tom de quem divagava.

-Quando cheguei ao Rio, vindo do interior para grande cidade, Getúlio, com a implantação do Estado Novo, em novembro de 1937, completara a sua longa manobra conspiratória em busca do poder ditatorial.

-Alguns acontecimentos recentes ajudaram. - aparteei.

-Com a irrupção do levante comunista em 1935, Vargas obteve apoio militar para o seu projeto de centralização do poder contra o radicalismo de esquerda. O putsch integralista, em maio de 1938, viria dar-lhe azo para reagir ao radicalismo de direita, consolidando, por mais sete anos, sua dominação caudilhista da vida política brasileira.

-E como foi seu começo no Itamaraty, Roberto Campos?

-Pouco depois do meu ingresso, tornou-se secretário-geral o embaixador Maurício Nabuco, filho do grande Joaquim Nabuco. Era um homem de alto estofo moral, mas não herdara o brilho do pai.

- O Brasil de hoje precisa ler as obras de Joaquim Nabuco. O presidente Fernando Henrique Cardoso e o compositor Caetano Veloso andaram divulgando pensamentos do grande brasileiro.

Roberto Campos me ouviu, com atenção e prosseguiu a sua narrativa com o Maurício de Nabuco.

-Ele era, como eu costumava dizer, um perfeccionista do supérfluo. Devolvia ofícios urgentes e complexos, porque o espaçamento de algumas linhas escapara à bitola oficial ou estava mal atada a fita verde-amarela.

-Os perfeccionistas do supérfluo proliferam no serviço público. - declarei com um sorriso de desânimo.

-Mas antes do concurso do Itamaraty, a minha memória guardou algumas histórias da Rua da Relação.

-Conte. - pedi.

-O porteiro alojou-me num quarto com três outros hóspedes. O preço era barato, mas certamente justificado pela penúria das instalações. Éramos quatro no quarto. Um deles tinha uma bizarra combinação de nomes: Aristóteles Lenormand Peroba. Parecia-me extravagante essa combinação de nomes: um grego, um belga e outro tipicamente nativo.

-Não precisa nem dizer que era chamado de Peroba.

-Isso; Peroba foi um ex-piloto do Lloyd Brasileiro transformado em chefe de vendas das Casas Pernambucanas. No meu livro “Lanterna na Popa”, falo da sua triste história de amor.

E continuou com os colegas de quarto.

-O hóspede Flávio era um guarda-civil, cujos padrões éticos eram estritamente função do fluxo de caixa. Dizia ele que o salário até que não era mau; o pior era viver os últimos 29 dias do mês... Em geral, na primeira parte da quinzena, Flávio era um austero policial, cumpridor de seus deveres. Costumava enxotar as bichas da Praça Tiradentes, um tradicional valhacouto dos homossexuais da época. Lembro-me ser frequente objeto de solicitações pecaminosas de bichas que faziam o trottoir entre o Teatro São José, na praça, e o Teatro do Recreio, no fim do beco, onde pontificava Walter Pinto com seus shows, cuja pièce de resistance eram as fabulosas pernas de Virgínia Lane.

-Há mais um hóspede. - cobrei.

-Era o Theófilo. Seu problema era a epilepsia, depois dos ataques, tornava-se violento. Descobri que a récita de trechos da missa em latim o acalmava. Era uma espécie de exorcismo, arte para a qual eu estava sumamente qualificado, pois, no Seminário Católico de Belo Horizonte recebera as ordens menores, inclusive a do exorcistato. Enquanto Theófilo estrebuchava no chão, começava eu o recital litúrgico: - Introibo ad altare Dei. Ele passava a murmurar em resposta: Ad Deum qui laetificat juventutem meam (Ao Senhor Deus, que alegra minha juventude). Acrescentava eu: Judica me, Deus, et discerne causam meam de gente non sancta: ab homine iniquo et doloso erue me (Julgue-me Deus, e separa minha causa daquela de gente não santa: protege-me do homem iníquo e doloso). E por aí adiante: Domine exaudi orationem meam... (Senhor, ouve minha oração). Et clamor meus ad te veniat (E a ti chegue meu clamor).

-O som dos versículos atuava como uma forma de hipnose. - encerrou Roberto Campos com essa frase a sua referência ao colega de quarto que sofria de epilepsia.

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