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segunda-feira, 17 de outubro de 2011

2030 - iluminados 2

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3860 Data: 8 de outubro de 2011

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65ª VISITA DOS ESCRITORES À MINHA CASA

-O latim que você aprendeu como seminarista lhe foi útil até no ministério do Planejamento, Roberto Campos, quando você defendeu, em cadeia de rádio e televisão, a política-econômica do governo Castelo Branco contra os ataques do governador Carlos Lacerda.

-Rapaz, aquilo me deu um susto... Caminhava eu pelo calçadão de Copacabana, quando sou agarrado por um crioulo de dois metros, que me suspende. Estou morto – imaginei. Ele, então, me diz: “Isso mesmo, cague latim na cabeça do assassino do Getúlio”.

-Você também conhecia alguma coisa do idioma grego?

-Sim, quando entrei na Academia Brasileira de Letras e me tornei amigo do Carlos Heitor Cony, nós dois trocávamos textos em gregos.

-Como conhecedor de idiomas quem você mais admira?

-João Guimarães Rosa, sem dúvida, o maior amante das palavras sem distinção de nacionalidade. Era um poliglota versado em latim e grego, que se tornaria conhecedor de nove idiomas, inclusive exóticos, como húngaro, o servo-croata, o persa, o árabe, o malaio e o japonês. Tratava-se de uma coisa estranha, pois aprendera algumas dessas línguas ainda quando pacato médico do interior em Itaguara, Minas Gerais. Quando o conheci no Itamaraty, dizia-se um “fabulista mercenário”, pois publicara aos vinte anos, alguns contos “não por amor à arte, mas por amor ao dinheiro”. Em 1936, ganhara o prêmio da Academia Brasileira de Letras com seu livro de poemas Magma, nunca publicado. “Sou um poeta intramuros” - costumava pilheriar.

-Você falou da sua admiração por ele. - lembrei.

-Trocávamos versos em latim. Logo, ele começaria a escrever Sagarana, que foi publicado em 1940. Guimarães Rosa usaria criativamente afixos e preposições latinas para conseguir extraordinários efeitos estilísticos, surpreendentemente sintonizados com o balbuceio sertanejo. Grande Sertão: Veredas foi uma obra-prima de engenharia semântica, revelando Guimarães Rosa incrível habilidade para transformar o cotidiano em lenda. “Sou médico, rebelde e soldado”, dizia Rosa, que durante a revolução constitucionalista de 1932, fora voluntário para serviços médicos no setor do túnel, onde também se encontrava o urologista Juscelino Kubitschek.

-Quando o conheceu, ele já fora designado para o Consulado de Hamburgo, e você, Roberto Campos?

-Meu começo no Itamaraty?... Eu e o Júlio Agostinho de Oliveira não conhecíamos ninguém lá e, por isso, éramos os patinhos feios. Foram todos requisitados para os diferentes departamentos mais nobres – o Político, Jurídico e o Cultural. Não tendo sido nossos trabalhos requestados (*) por ninguém, fomos consignados à Divisão de Material, ou seja, o almoxarifado. Tratava-se de óbvia subocupação de nossos talentos. Dedicarmo-nos a construir um sistema sofisticado de controle de custo de material, com enorme esbanjamento de gráficos e projeções estatísticas. Àquela época, o material de expediente era distribuído centralmente, a partir de Londres, pela Casa Harrison & Sons, pois o Itamaraty se preocupava validamente com a padronização do material, e, frivolamente, com requintes de qualidade. Com nossa sofisticação estatística, o Itamaraty teve um almoxarifado de luxo.

-Voltando às críticas provocadas pela política econômica do governo Castelo Branco, que tinham você e o Octávio Gouveia de Bulhões à frente...

Açodado, Roberto Campos me atropelou com sua oratória.

-O governo começou liberando os preços e as exportações agropecuárias, tradicionalmente sujeitas a controles e congelamentos. A liberação foi seguida de uma brusca, porém temporária elevação de preço de alimentos, que levou Augusto Frederico Schmidt, amigo de Castelo Branco e meu velho adversário dos tempos do governo Kubitschek, a procurar Castelo Branco para adverti-lo da “iminente catástrofe inflacionária”. Falava com a autoridade de grande acionista dos supermercados Disco. Octávio Bulhões e eu nos esforçamos para tranquilizar o presidente. Essa reação de mercado seria temporária, pois a oferta se expandiria. De qualquer modo, os controles de preço tinham resultado em filas de compradores e escassez de alimentos, o que equivalia a uma inflação oculta. Era o que eu chamava de “inflação socialista”. Eu dizia para o presidente Castelo: “O capitalismo tem preços flexíveis e prateleiras cheias, o socialismo, preços congelados e prateleiras vazias.”

-Recordo-me que no meio da euforia com o Plano Cruzado, surgiu a sua voz dissonante.

-O congelamento de preços abriu o caminho para o fracasso do Plano Cruzado. Ainda bem que Fernando Henrique Cardoso, como ministro da Fazenda, conseguiu convencer o presidente Itamar Franco a deixar os preços liberados no Plano Real.

-Voltando ao tempo do governo Castelo Branco, o seu maior crítico na área econômica foi o governador Carlos Lacerda. Ele escreveu livro, falou em cadeia de rádio e televisão, deixou as Forças Armadas de prontidão.

-Enfrentei de uma só vez os dois polemistas mais terríveis do Brasil: Carlos Lacerda e Assis Chateaubriand.

-Assis Chateaubriand estava numa cadeira de rodas.

-Sim, mas o seu cérebro funcionava como nos velhos tempos e ele tinha mil assessores para andar por ele.

-E você foi para a televisão defender o governo?... Eu me lembro; morava numa casa de vila na Rua São Gabriel e não saía da frente da televisão quando você e o Lacerda falavam.

-O presidente Castelo me ordenou que fizesse a defesa do nosso programa financeiro.

-O ponto polêmico era o PAEG – Plano de Ação Econômica do Governo 1964/1966. Nele, atuei full time, com a colaboração do Octávio Bulhões, Mário Henrique Simonsen, jovem e inteligentíssimo, e Bulhões Pedreira. O principal arauto da objeção ao PAEG foi Carlos Lacerda. Ele era especialista em criar bonecos de palha para depois destruí-los. Lacerda descrevia o PAEG como um “código de intervencionismo e dirigismo estatal”, aplicado a uma economia “socializante sem ser socialista, com um palavreado liberal e atos intervencionistas”. Ele achava o PAEG comprometido pelo vício original de tornar o complexo econômico, numa sociedade democrática, como algo que pode e deve ser objeto de um planejamento ou programa global. E pleiteava a adoção de uma “política de soluções práticas, adaptável às circunstâncias”.

-Foi injusto. - interrompi-o.

-Eu demonstrei o quanto ele estava errado.

-Errado de todo?- provoquei o Roberto Campos.

-Não, em alguns casos nós exageramos. Como, por exemplo, o número de ovos que o Brasil produziria no ano. Carlos Lacerda perguntou se as galinhas tinham sido consultadas.

De repente, Roberto Campos olhou para cima.

-O ectoplasma de um dos 18 do Forte do Itamaraty pretendia se materializar aqui, na nossa conversa, mas não escreveu livro algum.

-Eu o considerarei como uma visita.

Em seguida, pedi a sua opinião sobre Castelo Branco.

-O político pensa na próxima eleição, e o estadista, na próxima geração. Castelo Branco foi um estadista.

(*) nada como distribuir o seu O BISCOITO MOLHADO. Requestar, que parece com o verbo em inglês to request é a mesma coisa: solicitar.

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