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terça-feira, 18 de outubro de 2011

2032 - os iluminados 3 - a bossa nova

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3862 Data: 13 de outubro de 2011

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66ª VISITA DOS ESCRITORES À MINHA CASA

-Roberto Campos, você esteve na Rússia?

-O Brasil restaurou relações diplomáticas com a União Soviética, em 1961, quando o meu inesquecível amigo San Tiago Dantas era ministro do Exterior do período João Goulart. No governo Castelo Branco, coube a mim formar uma comitiva de brasileiros para intensificar nossos laços, apesar das ressalvas do ministro da Guerra, Costa e Silva.

-Lembro-me, quando li “A Lanterna na Popa”, que José Mindlin, da Metal Leve, integrou essa comitiva.

-José Mindlin nasceu na Ucrânia, era o único, entre nós, que falava o idioma eslavo.

-Certamente, saiu à cata de livros raros, na União Soviética. - previ.

-Fiquei hospedado no compound da Embaixada do Brasil, à Rua Guertzena, 54. Para a minha sorte, o embaixador era Henrique Rodrigues Vale, meu colega de concurso para o Itamaraty, um dos componentes dos 18 do Forte. Henrique se celebrizou pela sua prodigiosa memória, declamava, de cor, interminavelmente, versos de Camões e Bocage. Mais tarde, o Mal de Alzheimer o atingiu e a sua lendária memória se transformou num tatibitate infantil.

-Ainda bem que as suas recordações não o abandonaram nos seus 84 anos de vida.

-O prédio da embaixada do Brasil em Moscou tinha certa dignidade, com salões de piso alto e um bom piano, no qual Arthur Moreira Lima nos brindava com a música de Chopin.

-Você contou aquela piada russa no seu livro de memórias... - interrompi.

-Soube de algumas piadas pelo embaixador do Canadá, na União Soviética, John Ford, casado com uma brasileira. Ele conseguia ir além da curva da sexta vodca com os funcionários soviéticos e, assim, aprendeu muito sobre o senso de humor deles.

-Conte uma dessas piadas. - pedi.

E ele me atendeu:

-Em Moscou, a diferença entre drama, tragédia e realismo socialista é a seguinte: drama é quando se tem a mulher e não o apartamento; tragédia é quando se tem o apartamento e não se tem a mulher; e realismo soviético é quando se tem a mulher e o apartamento na hora exata da reunião do Partido.

-Você contou essa e outras piadas da União Soviética ao presidente Castelo Branco, não contou?

-Sim e disse ao Castelo que, ao contrário do que eu supunha, o sense of humor sobrevive na União Soviética e isso é o começo da salvação. Não se sustenta um país que não sabe rir de si mesmo, defeito fatal de Hitler.

-Dos soviéticos para os americanos e... a sua passagem pelos Estados Unidos como embaixador do Brasil, no governo João Goulart?

-Como são muitos os assuntos do meu tempo de embaixador nos Estados Unidos, vou me restringir aos músicos.

-Ótimo, Roberto Campos.

-Com quatro dias de trabalho, fui abordado, na embaixada, de maneira agressiva, por uma americana com ar um pouco hippy; disse-me ela que era hábito dos embaixadores apoiar e encorajar talentos artísticos de seus respectivos países quando se apresentavam em Washington. Ela estava hospedando em sua casa um verdadeiro gênio pianístico – João Carlos Martins- sem que tivesse conseguido despertar a menor atenção dos diplomatas brasileiros. “O mínimo – dizia ela – que se poderia fazer seria prestigiá-lo com uma recepção após o concerto inaugural, para apresentá-lo ao mundo cultural de Washington”.

-Quem era ela?

-Ann Mansfield, filha do líder da maioria no Senado, Mike Mansfield, que mais tarde se tornaria meu grande amigo.

-E a sua reação diante da proposta da Ann Mansfield que, para você, ainda era uma desconhecida?

Respondi-lhe que isso seria fácil em termos materiais. Eu poderia fornecer a embaixada, as bebidas e os petiscos. Entretanto, tendo chegado há apenas quatro dias, meus conhecimentos sociais eram extremamente limitados. Por que não dividir a tarefa? Eu ofereceria as instalações físicas, e ela, como mecenas de saias, convidaria as pessoas para o cocktail.

-E tudo deu certo?

-O concerto inaugural da carreira de João Carlos Martins- tocando peças de Bach, que o consagrariam mais tarde como grande intérprete – foi um sucesso. E a recepção na embaixada permitiu-me contatos com uma gama diferenciada de políticos, burocratas e artistas. Ann Mansfield conhecia bem não só o meio diplomático como o círculo político de Washington.

-No seu tempo de embaixador, Roberto Campos, aconteceu o célebre concerto de Bossa Nova no Carnegie Hall.

-Essa onda musical, a grande inovação do fim dos anos 50 e começo dos anos 60, surgira no Brasil, mas só se tornou um “acontecimento” nos Estados Unidos após dois concertos marcantes pelo final de 1962. O primeiro se realizou em novembro, em Nova York, habitualmente reservado a exibições de música clássica. A esse concerto compareceu Adlai Stevenson, então representante americano na ONU.

-Adlai Stevenson tinha perdido para John Kennedy a indicação pelo Partido Democrata para concorrer à presidência dos Estados Unidos. - manifestei-me.

-O segundo foi o concerto no Lisner Auditorium em Washington, em dezembro. Organizei uma recepção na embaixada, à qual compareceu em peso o mundo político e diplomático de Washington, interessado na novidade musical. Ali estavam João Gilberto (que deu um susto no pessoal da embaixada ameaçando não comparecer), Tom Jobim, Luiz Bonfá, Carlos Lyra, Oscar Castro Neves, Sérgio Mendes, Sérgio Ricardo, Roberto Menescal e Agostinho dos Santos. Compareceram também os promotores da “Bossa Nova” nos Estados Unidos: Felix Grant, Stan Getz, Lalo Schiffrin e Charles Byrd. Foi um sucesso artístico e propagandístico.

-Você não cultivava a música clássica como Mário Henrique Simonsen?

-Mário tinha um gosto musical muito mais apurado do que o meu, mas aposto que ele gostaria de estar no meio da plateia do Carnegie Hall cantando, como todos, “O Pato”, com o João Gilberto. Ele era bem-humorado.

-E a Conferência de Bretton Woods, que mudaria a economia do mundo ocidental?

-Rapaz, isso foi de 1 a 22 de julho de 1944, com a participação de 44 países. Eu era muito novo. Fui como terceiro secretário de embaixada. Na delegação brasileira estava o ministro da Fazenda do governo Getúlio Vargas, Arthur de Souza Costa, mas os grandes conhecedores de economia eram Eugênio Gudin e Otávio Gouveia de Bulhões.

-Se um dos dois vier me visitar, ficarei honrado. - disse.

-O grande nome de Bretton Woods, um vilarejo nas montanhas de New Hampshire, foi Keynes. Lá também estavam Denis Robertson e Lionel Robbins. A piada corrente era que Keynes era demasiado inteligente para ser coerente; Denis Robertson demasiado coerente para ser inteligente; e Lionel Robbins não era nem inteligente nem coerente.

-Com o tempo, Lionel Robbins desmentiu os detratores.

-Keynes era o único a quem fora permitido levar, ao isolado hotel de Bretton Woods, a esposa, a belíssima bailarina russa Lydia Lopokova. Todos os demais eram obrigados, durante as três semanas de duração da Conferência, a uma vida celibatária. Vivia-se um racionamento de gasolina e tínhamos, mesmo, de ficar longe dos lugares mais alegres. A piada corrente é que se tratava de um truque diabólico do judeu Morgenhau, presidente da delegação americana e secretário do Tesouro, porque depois de três semanas sem mulher, todos assinariam qualquer documento.

-Roberto Campos, alguém foi mais patrulhado pelas esquerdas brasileiras do que você?

-Penso que não.

-Mesmo tendo passado tantas décadas no poder, você, com 80 anos de idade, ainda participava de eventos em morros do Rio de Janeiro para obter votos como candidato ao Senado. Muitos dos seus críticos da esquerda, com poucos meses no governo, enriqueceram, pilharam os cofres públicos.

-Fui ingênuo ao dizer que o esquerdismo era uma doença infantil como o sarampo, é bem mais do que isso.

Depois de uma pausa, despediu-se sob a alegação de que outro espírito queria baixar.

-Obrigado, Bob Fields.

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