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segunda-feira, 6 de julho de 2015

2888 - Estalado Dicionário Biográfico


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5138                              Data:  02 de julho de 2015

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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO XLIII

 

PROVA (02) – Com o meu desempenho no concurso de admissão de 1960 ao Colégio Militar, parecia que voltava à turma 1 da Escola 9-10 Manoel Bomfim. Antes, pensando que eu dormia, meu pai dizia, com a voz irritadiça, para a minha mãe, que não tinha dinheiro para pagar uma escola particular. Como toda criança, eu me senti culpado por um erro que não era meu e continuei, na cama, de olhos fechados. Trabalhando em não sei quantos jornais, voltando do trabalho de madrugada, ele conseguiu alguns cruzeiros e pagou um explicador não só pra mim como também para a minha irmã.

O explicador era o Seu Alcyr (assim o chamávamos), que dava aulas de matemática no Colégio Pedro II e na sua casa. Ele morava na Rua Rocha Pitta, com os pais, a esposa e o filho bebê, a menos de 800 metros de nós, assim, eu e minha irmã íamos da Rua Cachambi até lá a pé no horário vespertino.

As aulas eram ministradas numa dependência anexa a casa, de tamanho razoável, dividida em duas salas; numa, estavam os alunos que se preparavam para os concursos de admissão aos colégios públicos; na outra, aqueles que já estudavam no ginásio ou no científico, mas necessitavam de um reforço na matéria em que o Seu Alcyr era professor.

Ajudava-o a encantadora Olinda, normalista de 17 anos, que estava no último ano do Instituto de Educação Carmela Dutra, que, assim, se preparava para ser professora. Ficou combinado assim: ela nos ensinava Português, um pouco de História, e ele, vindo do Pedro II, onde ficava a maior parte do tempo, e da outra sala, Matemática.

Havia notas? Não, porque não fazíamos provas; o método era outro: tanto a Olinda quanto ele, principalmente ela, nos davam exercícios para fazer e depois, nos mostravam onde erramos. 

No segundo semestre, com a proximidade das provas, eu passei para o horário integral e a minha mensalidade subiu de 500 para 1000 cruzeiros. Era o que dava no orçamento, a minha irmã não pôde colher os frutos do horário integral e sentiu, certamente, o gosto da inferioridade que a sociedade relega às mulheres.

Mas não foi fácil frequentar as aulas da manhã. Olinda estudava nesse turno no Carmela Dutra e, assim, a garotada ficava inteiramente entregue ao Seu Alcyr, que não primava pela paciência. A sua prática pedagógica não incluía a palmatória e milhos nos joelhos e sim um tapa de mão aberta na nuca que ele mesmo chamava de estalo.

Tinha as suas idiossincrasias; não suportava gíria. Com ele, 1gíria=1 estalo. Palavrão?... Não sei responder, pois nenhum aluno seu ousou dizer um nome feio, mas imagino que, em vez de estalo, o castigo seria um direto no queixo como aqueles desferidos pelo Éder Jofre.

As garotas estavam isentas de receber estalos – algum privilégio as mulheres tinham de ter. Recordo-me de uma delas, que entraria para o Pedro II, depois de ter malogrado nas provas do Visconde de Cairu, enfrentando a ira do professor. Quando ele a chamou de burra, ela replicou de imediato: “Sou burra porque sou sua aluna”. Não houve estalo, ele teve de engolir o desaforo junto com o catarro da sua gripe crônica.

Eu não diria que os estalos que os meus colegas levavam, às vezes em série, doíam em mim, mas a empatia era acentuada. Eu ficava mortificado com a choradeira deles, embora alguns aguentassem firmes as pancadas, mostrando-se durões. Resumindo: eu morria de medo dos estalos. Ele gostava de mim, seu pai era amigo da aeronáutica do Tio Eduardo, marido da irmã mais velha da minha mãe, mas eu não me sentia seguro: era como Dâmocles, não com uma espada, mas com uma espalmada mão sobre a minha cabeça.

Uma manhã, ele se pôs a nos ensinar as preposições. Como o ensino da língua portuguesa não era a sua especialidade, a sua didática foi meio capenga e ele perdeu a paciência:

“São dezessete preposições, amanhã, vocês vão me dizer todas elas, cada erro é um estalo.”

Para mim, era como se eu fosse ser submetido a uma prova desde aquela em que escrevi “incendiadez” como aumentativo de incêndio. Mais eu tinha uma alternativa: faltar e, pela primeira e única vez no ano, faltei, mesmo tendo decorado todas as dezessete preposições – ainda hoje, cito todas elas como se estivesse ainda sob a ameaça de tapas na nuca. Não fui o único ausente, apenas um colega da turma compareceu e jogou na nossa cara, durante um tempo, a sua coragem e a nossa covardia.

A uns dois meses do início dos concursos das escolas públicas, começaram a nos ensinar Geografia e mais um pouco de História, que, ainda assim, ficaram muito aquém do peso que Seu Alcyr, Matemática, e a Olinda, Português, deram a essas duas matérias. Mas houve um critério para isso; em alguns concursos, português e matemática eliminavam.

O primeiro colégio público de renome, em 1961, a abrir as inscrições foi o Visconde de Cairu e lá foi a minha mãe, conduzindo-me pela mão, colocar-me entre os milhares de candidatos. Quando vi sobre um balcão uma placa onde se lia 70 vagas, fiquei sobressaltado.

A primeira prova era de Português, considerada a mais importante de todas. Os candidatos foram espalhados por diversos educandários. Assim, fui para o Colégio Rio Grande do Sul, no Engenho de Dentro, prestar, quase um ano depois, a minha primeira prova depois do fracasso no Colégio Militar. De volta para casa, no bonde lotado de candidatos, minha mãe me perguntou, como todas as mães naquela condução, como fora a prova e eu respondi: difícil. “Mas todos estão dizendo que foi fácil” - retrucou. A minha nota foi 6 e eu fui para uma segunda prova de português, que seria de redação e de interpretação de textos, já que a primeira foi basicamente sobre gramática. A minha nota foi 9 e eu fiquei com média 7,5.

Com a prova de Matemática, veio um chorrilho de zero. Mesmo tendo estudado com um professor de Matemática do Pedro II, tirei 5 que, naquele contexto, foi uma nota muito boa. A sorte de muitos foi o fato de ela não ser eliminatória, se não, uns 60% ficariam no caminho. Na prova de História, senti falta de mais estudos na casa do Seu Alcyr e a minha nota foi 6. Saí-me pior em Geografia com uma vergonhosa nota 4. Recordo-me perfeitamente que peguei o Diário de Notícias do meu pai, abri na página dos resultados dos exames do Visconde de Cairu e procurei uma nota abaixo de 4 em Geografia, não encontrei.

Bem, eu havia passado, mas as minhas notas em Geografia e História me tirariam, com toda certeza, das 70 vagas. Como o governador da Guanabara, Carlos Lacerda, recém-empossado, estendeu generosamente o número de vagas, eu já tinha um colégio público para cursar o ginásio.

A minha mãe se esqueceu do Colégio Militar, deu-se por satisfeita com o meu primeiro êxito. Além da aura de bom ensino, que pairava sobre o Visconde de Cairu, o colégio não ficava longe; para ela seria apenas pegar o bonde Cachambi e me levar até lá nos dias de aula.  

 

Um comentário:

  1. Errata: não é Instituto de Educação Carmela Dutra, e sim Escola Normal Carmela Dutra.

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