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segunda-feira, 27 de julho de 2015

2903 - a pequena biblioteca


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5153                  Data:  23 de julho de 2015

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121ª VISITA À MINHA CASA

 

-Tudo bem?- Perguntei ao Jorge Luís Borges quando me deparei com ele na sala da minha casa.

-Sim, principalmente porque, com a minha morte, recobrei a visão.

-Sempre que o seu nome chega até mim, eu logo me lembro de que a sua acuidade visual se esvaía paulatinamente até ir-se de vez.

-Os poetas, como os cegos, podem ver no escuro.

-Certamente, a qualidade das suas obras durou até a sua morte em 1986, a dois meses de você completar 87 anos de idade.

Notei, então, que os seus olhos percorriam toda a sala e pareciam varar as paredes.

-Procura alguma coisa, Borges?

-A biblioteca.

-A minha biblioteca tem tantos livros quanto à Biblioteca de Alexandria depois do incêndio.

-Aquele incêndio foi o ato mais criminoso da história.

-A biblioteca mais próxima daqui, que poderia agradá-lo, era a do pai de uma amiga minha, a Rosa Grieco; 45 mil livros, porém, foi desfeita depois da morte dele.

-Você deveria romper a amizade com essa moça.

-Ela não teve a mínima culpa e sim seus irmãos e suas irmãs, sendo uma delas denominada pela Rosa de irmã-cupim. Eles estavam mais interessados na pecúnia. Rosa conservaria todos os livros e acrescentaria outros; pois completou, em 2015, 80 anos de leitura, começou aos 4.

-Quanto a enxergar no escuro, não havia problemas, por eu ser poeta, e, como leitor, sempre houve pessoas que liam para mim.

-O bibliófilo e escritor Umberto Eco o homenageou no seu romance “Em Nome da Rosa” com um personagem.  Este se chama Jorge de Burgo e era cego, além de venerar a biblioteca da igreja, de que era guardião, naquele cenário medieval.

-Ele se inspirou no meu conto “A Biblioteca de Babel”, que continha todos os livros do mundo.

-É verdade que Jorge de Burgos é um dos vilões da história. Não sei se você tomou isso como homenagem.

-Sim, a citação é válida. Soube que o Umberto Eco foi eleito por uma revista dos Estados Unidos o segundo maior intelectual do mundo, perdendo para Noam Chomsky.

-Este é americano.

-Como é o paraíso, Jorge Luís Borges? Você havia escrito que sempre imaginou o paraíso como uma espécie de livraria.

-E é, se fosse o que muitos imaginam, anjos tocando harpa, seria um tédio infernal.

-Confirmar-se-ia aquela frase do Mark Twain: “Prefiro o inferno pelas companhias e o paraíso pelo clima.”

-Como o paraíso é igual a uma livraria, o Mark Twain está sempre contente lá em cima, até parou de inventar aquelas estrovengas que o levaram à falência quando vivo, salvou-o a literatura, que era a sua verdadeira vocação.

-Tinha de haver livros mesmo no paraíso, não é, Borges?

Nesse instante, a sua expressão se tornou reflexiva.

-Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso, sem dúvida, é o livro. Os demais são extensões do seu corpo. O microscópio, o telescópio são extensões da sua vista; telefone é extensão da sua voz; depois, temos o arado e a espada, extensões de seu braço. Mas o livro é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação.

-Borges, apesar de você ter nascido em Buenos Aires e vivido parte da sua infância na Argentina, você aprendeu a ler em inglês e depois, sim, em castelhano?

-Sim; a minha avó materna era inglesa e éramos muito unidos. Com sete anos, escrevi um resumo da literatura grega no idioma de Shakespeare. Um ano antes, eu já havia dito ao meu pai que seria escritor.

-Você foi bem precoce.

-Com oito anos, escrevi meu primeiro conto, “La Visera Fatal”, baseado num episódio de “Dom Quixote”, de Cervantes, livro que me fascinou durante toda a minha vida. Aos nove anos, verti do inglês para o castelhano “O Príncipe Feliz”, de Oscar Wilde.

-Quando você foi estudar na Suíça?

-Em 1914, quando vieram os indícios de uma cegueira irreversível. Fomos todos para a Europa e, em Genebra, eu fiz o bacharelado de 1914 a 1918, período da 1ª Grande Guerra Mundial.

-A cegueira se manifestou tão cedo. - murmurei penalizado.

-Uma resenha de três livros espanhóis, para um jornal de Genebra, foi a minha primeira publicação. Eu já escrevia também em francês.

-E depois de formado?

-Fomos para a Espanha, em 1919 e lá, me ocupei em escrever poemas e manifestos.

-Quando voltou para a Argentina?

-Em 1921, quando Buenos Aires vivia a efervescência dos anos 20. Escrevi o meu primeiro livro de poema “Fervor em Buenos Aires”, publicado em 1923 e segui escrevendo.

A crítica diz que você criou um novo tipo de regionalismo ao acrescentar uma visão metafísica.

-Durante um tempo foi assim, depois, senti-me mais realizado como autor especulando sobre a narrativa fantástica.

-Em 1937, você foi nomeado diretor da Biblioteca Pública Nacional.

-Foi meu primeiro e único emprego. Fiquei lá durante nove anos.

-Por que saiu se estava tão próximo de dezenas, centenas de milhares de livro?

-Porque não me agradava a tendência da Argentina pelo fascismo. As ditaduras fomentam a opressão, as ditaduras fomentam o servilismo, as ditaduras fomentam a crueldade, mas o mais abominável é que elas fomentam a idiotia.

-E o amor?

-Conheci, primeiramente, Estela Canto. Eu idealizava as mulheres, elas eram Dulcineias para mim. Porém, Estela era moderna e liberada para a época, quando a pedi em casamento, ela me respondeu que não poderíamos casar sem antes dormir juntos. Senti-me chocado e desapareci.

-Ela também escrevia?

-Escreveu um livro de memórias “Borges à Contraluz”. Mas esse caso eu contei na minha autobiografia.

-Você se casou muito tarde.

-Em 1967, com 68 anos de idade, eu me casei com uma amiga de infância, Elsa Astete. O casamento durou três anos, quando fugi de casa sem coragem de declarar o rompimento da nossa união.

-Mas houve um segundo casamento?

-Quando eu estava com 82 anos de idade, eu me casei com uma ex-aluna de origem nipônica, chamava-se Kodama. Ela lia e redigia o que eu ditava. Era, acima de tudo, a minha secretária. Herdou os meus direitos autorais quando morri. Muito justo.

-Antes, quem lia e redigia o que você ditava?

-Com 50 anos, eu já havia perdido parcialmente a visão. Quando a cegueira se tornou completa, mamãe redigiu o que eu ditava e leu para mim. Ela faleceu em 1975, quando eu contava 76 anos de idade.

-Você não se desesperava ao extremo?

-Em 1983, no meu relato “Agosto 25, 1983”, publicado no jornal “La Nación”, anunciei a data do meu suicídio. Quando me cobraram o suicídio, eu respondi que a covardia me deteve.

Procurei descontraí-lo.

-Você escreveu letras para tangos e milongas comparáveis, em primor, aos seus poemas.

-Coloquei letra até num tango de Astor Piazzolla.

-Que compunha tangos sofisticados para o gosto popular. - acrescentei.

-O gosto popular colocou aquela desgraça do Perón no poder.

-Como você sempre se sentiu, Borges?

-Embora eu escrevesse muito, eu me sentia mais leitor do que escritor. Bem, hora de ir-me.

-Mas temos tanto a falar das suas obras literárias.

Partiu, deixando-me com a sensação de que ficaria mais tempo se eu tivesse uma biblioteca comparável a do Agripino Grieco.

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