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segunda-feira, 13 de julho de 2015

2893 - em pé, para sempre


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5143                        Data:  09 de julho de 2015

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SABADOIDO

 

-Entrei no vagão do metrô na estação da Carioca, vindo do trabalho e me deparei com dois idosos e uma idosa em pé.

-O metrô estava cheio?

-Para aquele horário, Claudio, antes das 4 horas da tarde, estava cheio sim. Não era uma composição nova, era a antiga.

-Então, piorou. - concluiu.

-Certa vez, um passageiro falou que essas composições antigas tinham uns 30 anos; puxei conversa com ele, que me disse que chegou a trabalhar na reparação delas em meado dos anos 80. Mas não piorou, como você disse, porque nesses trens há mais barras para os passageiros se segurarem.

-Nos trens chineses não há?

-Tantas barras ou balaústres, não. Como são muitos os chineses, acredito que um se escora no outro e ninguém cai durante a viagem. Mas deixe-me contar o que aconteceu.

-Conta.

-Na estação da Central, quando há o fluxo e refluxo de passageiros, um idoso se sentou, outro permaneceu de pé e a esposa deste conseguiu um lugar onde ela se segurava numa barra ao mesmo tempo em que encostava o corpo na lateral do vagão. Também ficamos mais confortáveis porque saiu mais gente do que entrou. Esses idosos, bem entendidos, tinham mais de 70 anos.

-E ninguém dava o lugar? - perguntou-me meu irmão.

-Então, um cidadão, indicando o senhor que ficara de pé, dirigiu-se a todos em alto e bom som: “Não há um cavaleiro, uma amazona, que possa ceder o lugar para este senhor?”

Claudio riu, enquanto meu sobrinho entrava na cozinha do sabadoido.

-Carlão, quando eu estudava no Santa Mônica, caiu na prova o feminino de cavaleiro.

-E você respondeu dama? - brinquei.

-Não, mas houve colegas que responderam dama, pensando que amazona tinha a ver com o estado.

-Quando eu ouvi aquilo, no metrô, pensei cá comigo: o meio de transporte aqui não é cavalo.

-E um cavaleiro ou uma amazona cedeu lugar para o velhinho sentar? - interessou o Claudio pelo desfecho da história.

-O idoso se sentiu constrangido por ser o alvo da atenção de todos, riu com as palavras do passageiro solidário, recusou as ofertas de bancos e se pôs a conversar com ele como velhos amigos, junto a um balaústre que seguravam com uma das mãos.

A palavra passou para o meu irmão.

-Esse negócio de lugar para se sentar é coisa mais séria do que se pensa. O Movimento dos Direitos Civis nos Estados Unidos, liderado pelo Martin Luther King, começou porque uma negra não se levantou para um branco se sentar, desobedecendo a ordem do motorista do ônibus e a lei do Alabama. Ela foi julgada e condenada.

-Foi isso mesmo?- duvidou meu sobrinho.

-Há um filme sobre isso, lançado há pouco tempo, com alguns erros históricos, injustiças feitas ao presidente Lindon Johnson, pelo que eu li, mas que deve ser visto. - manifestei-me.

-”Selma, Uma Luta pela Igualdade”.- identificou meu irmão o filme depois de pôr a memória para trabalhar.

-E mais – prosseguiu – o nome dela era Rosa Parks.

-Esse branco que estava de pé era idoso?

-Era nada, Daniel. E se fosse?... Ela vinha do trabalho, era costureira, estava cansada e, além do mais, sentava na fileira dos negros. O que já é um absurdo.

Sem tomar fôlego, continuei:

-Falo de cadeira, ou melhor, de pé. Quando me oferecem o lugar no metrô, eu recuso. Para mim, idoso é quem está com mais de 70 anos, e quando eu chegar aos 70, idoso, para mim, será quem já passou dos 75 anos.

-Vá me dizer, Carlinhos, que você recusa sem ficar louco para dar uma sentadinha?... - interveio meu irmão com a expressão matreira.

-Fala a verdade, Carlão? - aproveitou o Daniel a oportunidade.

-Claro que não seria nada mal eu sentar e resolver palavras cruzadas. Mas, de pé, aproveito para fazer uns exercícios físicos, sem sair do lugar, que tenho aprendido.

-A Gina saiu? - notei a ausência da minha cunhada.

-Foi ao supermercado e eu vou ao computador. - disse o Daniel saindo da cozinha.

-Claudio, vindo para cá, notei que colocaram um cartaz enorme no alambrado do campo da Praça Manet...

-O campo “Sangue e Areia”?

-Agora é “Sangue e Carpete”. Continuando: esse cartaz é tomado pelos retratos tamanho GG do Dudu e do filho com as palavras em letras garrafais: “Amigo é coisa pra se guardar debaixo de sete chaves dentro do coração.”

-A música do Milton Nascimento?...

-É o mesmo que colocar os retratos do Michael Corleone ao lado do seu irmão Fredo com essas palavras da canção. - comparei.

-Há aí uma grande diferença: o Michael Corleone mandou matar o irmão, com o Poderoso Chefão do bairro, não houve intermediários.

-É verdade. - concordei.

-O Dudu deixou um bom legado: limpou a área antes de ser morto. - comentou;

-Por isso, os moradores trataram com hostilidade os repórteres que apareceram por lá para cobrir o assassinato. Ele morreu com o índice de popularidade nas alturas como o do Lula quando largou o poder.

-Você já viu, Carlinhos, uma placa de metal em que está gravado o retrato do Dudu e as palavras: “Estou junto de Cristo.”?

-Descobri, agora, pois caminho ainda no escuro, que, na redoma com a imagem de São Jorge no cavalo matando o dragão, está encravada, numa pequena placa, o retrato do Dudu. Deve ser por isso que ninguém se atreveu a  roubar a imagem.

-Andaram furtando uma na Urca.

-Eu li no jornal, Claudio, na coluna do Ancelmo Gois, precisamente. Não me recordo o nome da santa, sei que a imagem foi recuperada com várias partes quebradas.

-Vá ver que os ladrões são do mesmo time daqueles que deram uma pedrada na cabeça da menina de 11 anos do candomblé. - aventou a hipótese.

-Ela, coitada, virou celebridade, mas, daqui a pouco cairá no esquecimento, confirmando o que disse o Andy Warhol: “Um dia, todos terão direito a 15 minutos de fama.”

-Mas não deveria cair no esquecimento, não. - bradou.

-Importa, no caso, a intolerância religiosa que continuará em cena, infelizmente. - argumentei.

-Aquela imagem de São Jorge matando o dragão, iluminada, chama a atenção. - disse ele.

-Apesar da sede universal da Igreja Universal Reino de Deus ficar nas imediações, a imagem resiste, sinal que o Dudu, mesmo morto, impõe respeito.

-Mas os evangélicos de lá são pacíficos.

-Eu estava brincando, Claudio. Quando eu fazia caminhadas pelas ruas e topava com um grupo deles, saindo do que chamam de “vigília”, eu não me preocupava, mas quando topava com grupos de funkeiros vindo da esbórnia, eu entrava na primeira esquina e sumia da vista deles.

Ruídos, vindo do portão, indicavam a chegada da Gina do supermercado.

 

 

 

 

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