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terça-feira, 23 de junho de 2015

2879 - Caridoso Dicionário Biográfico


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5129                          Data:  18 de junho de 2015

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MINIDICIONÁRIO  AUTOBIOGRÁFICO – XLI

 

ESMOLA – Há uma cena do filme “Umberto D” em que o velho aposentado, no meio da desolação da Itália pós-Segunda Guerra Mundial, sem um tostão no bolso, estica o braço com a mão espalmada para cima e, quando um transeunte faz menção de lhe dar uma esmola, ele vira rapidamente  a mão, como se quisesse saber se  pingos de chuva caiam.  Assisti a essa fita do Vitorio De Sica no “Cinema de Arte” da TV Excelsior, no início da década de 60, e me recordo de quase todo o enredo, principalmente, dessa cena, que julgo uma das mais significativas da história cinematográfica.  A película – soube depois – foi uma homenagem do grande cineasta ao seu pai.

É duro um trabalhador ter, um dia, de se tornar um pedinte, no caso do Umberto D, era impossível.

Lembro-me de um professor marxista da “História do Pensamento Econômico”, que, abordando as reivindicações dos operários no fim do século XIX, se referiu à Encíclica Rerum Novaram em que o Papa Leão XIII nos persuade a sermos caritativos, esmoleres, e comentou com deboche:

-Como dizia Ademar de Barros, leão não é 13, é 16.

Rogar por esmola, só em último caso, ou nem isso, o suicídio vem antes, como pensou Umberto D, que só não se matou porque seu inseparável companheiro Filk, um vira-latas, o impediu.

Não me canso de citar a maior das vitórias, para mim, do pugilista James Braddock, que se tornaria campeão mundial dos pesos pesados. Quando foi bafejado pela miséria, na grande depressão, com mulher e filhos para sustentar, além de estar com a mão quebrada, o que exacerbava o seu sofrimento no trabalho de estivador, recorreu à política assistencialista do Presidente Roosevelt. Após alguns meses, a sorte virou e vieram as vitórias com o seu retorno ao boxe; ele entrou, então, na fila e devolveu o dinheiro que o governo lhe dera. Um homem de fibra não recebe esmolas, aquilo tinha sido para ele um empréstimo.

O Papa Leão XIII me excomungaria se soubesse a minha reação com os pedintes. Na minha infância e pré-adolescência, não me recordo do meu pai ou da minha mãe, quando saía com eles, pingando tostões nas canecas dos mendigos, talvez esse gesto desfalcasse o dinheiro da passagem do bonde ou do ônibus na volta para casa. Também não me lembro de ninguém me pedindo dinheiro na minha adolescência, mas seria perda de tempo, pois minha receita mal dava para pagar o maço de cigarros Continental e, muitas vezes, percorria uns quatro quilômetros a pé até o Visconde de Cairu para poupar os centavos do bonde Cachambi.

Na minha fase adulta, topei com todos os tipos de pedintes. Os piores são aqueles que agem como os cabos eleitorais que praticam o corpo-a-corpo para obter votos para os seus candidatos. Certa vez, desci as cinco rampas da estação do metrô de Maria da Graça com um cracudo colado em mim pedindo dinheiro. Talvez a sacola colorida da Lidador, com uma garrafa de vinho, que eu carregava, lhe desse a impressão que eu era rico, tamanha foi a insistência. Depois de uns cinco não, rotundos, mas ineficazes, cogitei pegar a garrafa pelo gargalo e quebrá-la na sua cabeça. Não foi preciso, vinha um cidadão em sentido contrário, pela rampa e o cracudo se desgrudou de mim e foi perturbá-lo.

O fator surpresa, alguns anos atrás, quebrou a minha intolerância com os pedintes. Eu cruzava o Jardim do Méier, quando surgiu à minha frente, um sujeito que parecia Richard Gere no filme “Time Out of Mind”. Sem tempo para reagir, tirei umas notas de cruzeiro do bolso e lhe dei. Quando contei esse caso aos amigos, eles, que me conheciam bem, estranharam. “Se ele não era mendigo, o meu dinheiro pagou o seu excelente papel de ator.” - foi a minha justificativa. No caso do Richard Gere, atuando como sem-teto, ele recebeu de uma senhora, que não o reconheceu, um prato de comida. Sem sair do personagem, o ator agradeceu a caridade.

Aqui, no Rio de Janeiro, conhecidos meus que deram pratos de comida para mendigos, quase os receberam de volta na cabeça, como nos filmes do gênero pastelão. Houve uma exceção em Cabo Frio, apareceram três jovens, na nossa casa e meu cunhado os chamou para jantar; eles rasparam o prato.

Enfim, há toda uma fauna de pedintes que seria cansativo eu enumerar aqui, pois todas as pessoas que saem às ruas brasileiras conhecem à exaustão.  

Depois da Copa do Mundo de 2014, essa fauna se internacionalizou. Duas ou três vezes, viajando de metrô por volta do meio-dia, me surpreendi com trios de mocinhas latino-americanas dirigindo-se aos passageiros da maneira mais educada possível. Em seguida, faziam uma apresentação artística de uns cinco minutos com canto e instrumentos musicais. Encerrada a exibição (elas estavam bem ensaiadas), diziam que um sorriso nosso já era o pagamento para elas, mas se quisessem ajudar com algumas “platas”... Será que as mocinhas precisavam de dinheiro para retornar aos seus países de origem? Esta pergunta ficava só alguns segundos na minha mente, eu enfiava a mão no bolso e ouvia um “muchas gracias”. Eu não dava esmolas, eu pagava o “couvert” artístico.   

 

 

 

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                        

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