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segunda-feira, 22 de junho de 2015

2878 - Publicado Dicionário Ortográfico


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5128                           Data:  17 de junho de 2015

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MINIDICIONÁRIO  AUTOBIOGRÁFICO – XL

 

JORNAL – antes dos livros, mesmo os escolares, os jornais já faziam parte da minha vida.

Quando entrei para a escola, eu segurava o lápis como os primatas que, sem o polegar opositor, não desenvolveram a inteligência; eu não fazia o movimento de pinça. Quando começou a minha alfabetização, minha mãe, esposa e nora de jornalistas, me colocava diante das manchetes dos jornais e se punha a soletrar as letras para que eu lesse.

O meu pai trabalhou na revisão de vários periódicos até que se fixou no Diário de Notícias. Este, que ele trazia gratuitamente e mais o Globo, são os periódicos desde que comecei a ler.

-Compro o Globo porque é a minha cachaça. - dizia ele.

Tornei-me leitor com as tirinhas do Ferdinando, Pafúncio, Brucutu, Big Ben, Mandrake publicadas no jornal do Roberto Marinho. Havia aí influência do meu pai que, costumeiramente, as comentava, desancando o Pafúncio porque capacho da mulher, a Marocas. A minha atração maior, no que tange a histórias em quadrinhos, estava numa página em que eram publicadas, em sentido vertical, nas suas margens, duas séries: “Os Amores Célebres” e “Os Criminosos Selam Seu Destino”. Desta última, se a memória não me engana, foi contado o gangsterismo em Illinois, estado da cidade de Chicago corrompido da polícia aos julgadores, onde se projetava Al Capone; até que Roosevelt assumiu a Presidência da República, no lugar de Hoover e colocou os federais, os chamados intocáveis, para combater o crime.  Eu dedicava, contudo, mais atenção a “Os Amores Célebres”, em que conheci a paixão tumultuada entre Chopin e George Sand. Nada havia ali edulcorado, como em Hollywood na fita “A Noite Sonhamos”. A baixaria que envolveu a escritora, a filha Solange e um amante, com socos e pontapés, estava lá muito bem desenhada. Outra história dessa série foi com Bismarck. Mas quem foi o amor dele, que só pensava em política?... Teria sido a esposa Johanna von Puttkmer?... Não sei, só sobrou dos becos escuros da velha cidade das traições, a memória, conforme a comparação de Machado de Assis, uma cena: a sua namorada conseguiu um feito físico – equilibrar-se numa tora sobre um rio, ou algo parecido, e ele, com espírito competitivo, mostrou a ela que também era capaz de realizar tal proeza.

Também lia os artigos dos médicos da Clínica Mayo, e um deles não me saiu da retentiva, aquele que sugeria apenas um banho diário para que a proteção natural da pele não se perdesse. Ensinamento que sigo até hoje, abrindo exceções no verão de 40º.

Também lia a coluna de política do Maurício de Medeiros, que antes havia sido ministro da Saúde dos governos Café Filho e Juscelino Kubitschek. A leitura se tornou obrigatória para mim depois que frequentei o seu consultório na Rua da Quitanda. Por um conselho dele, que morreria atropelado no Centro, em 1966, com 81 anos de idade, deixei de fumar definitivamente.

O que dizer das crônicas esportivas do Nélson Rodrigues? Amigos meus falam saudosos dos contos “A Vida Como Ela É” (com cacófato e tudo), mas o meu pai, apesar de getulista, não comprava a “Última Hora”; assim, só conheci o Nélson Rodrigues em 1962, quando ele foi escrever “À Sombra das Chuteiras Imortais”, no Globo. Começava ali um fascínio de leitor para a vida toda.

Claro que eu também lia a coluna do Ibrahim Sued; mesmo jovem, eu sabia que nelas não estavam publicadas apenas futilidades, que havia uma linguagem única merecedora de atenção. Mas ele, que tentara popularizar o ditador Artur da Costa e Silva, chamando-o de “Seu Artur”, estranhamente se transferiu do Globo para o Diário de Notícias, que há mais de 10 anos deixara de ser o jornal de maior circulação do Rio de Janeiro. Lembrando que no Diário de Notícias já havia a colunista social Pomona Politis. Quanto a mim, evidentemente, não houve problema algum pelas razões já expostas.

Meu pai me contou que, certo dia, o Ibrahim Sued foi até a revisão e pediu que não corrigissem os seus erros ortográficos, que não mexessem em nada que ele escrevesse, pois aquele era o seu estilo. “Dissemos para ele, que faríamos o que pediu. Mas sal com c e cedilha não deixaríamos passar.”

Do Diário de Notícias, eu lia a Eneida. Meu pai não gostava dela que, certa vez, foi discutir com a equipe da revisão a família e o gênero das baleias. Ela gostava de samba – o Salgueiro a homenageou, em 1973, com “Eneida, Amor e Fantasia”, e a Mag, que também tinha uma coluna no mesmo jornal, não. Mag – Magdala da Gama de Oliveira – desdenha tanto o samba, que Janet de Almeida compôs “Pra Que Discutir Com Madame”, que seria gravado pelo João Gilberto.

Mas o meu interesse maior recaía nas crônicas do Nestor de Holanda, mormente quando ele tratava da língua portuguesa como o Pasquale Cipro Neto faz hoje, mas de maneira bissexta. Quando me deparei com uma coluna que corrigia os erros das celebridades assinadas por um desconhecido, meu pai me informou que era o Nestor de Holanda sob pseudônimo. As suas críticas eram contundentes, muitas vezes sarcásticas, por isso, eu me surpreendi quando soube, recentemente, que a Dolores Duran, mostrando-lhe uma letra para ele limar os erros de português, ouviu o Nestor de Holanda dizer que, caso o fizesse, tiraria o encanto da poesia.

Empolgado pela oratória do Carlos Lacerda, quando governador do Estado da Guanabara, passei a ler a Tribuna da Imprensa.  Meu pai, em momento algum, apresentou objeções, admirava a sua inteligência, embora nunca tenha revelado isso e o fato de ser, além de político, jornalista.

Quando veio a revolução de 64, a prisão do Carlos Lacerda, a greve de fome, que ele abandonou quando o seu irmão Maurício lhe disse: “Carlos, você quer fazer Shakespeare no país da Dercy Gonçalves?”, eu já havia largado a “Tribuna da Imprensa”. Quanto ao Diário de Notícias, que vinha aos trancos e barrancos no período militar, chegou ao fim em 1976, apesar de ajudado pelo presidente Médici, que fora seu leitor na mocidade. O Diário de Notícias já não aparecia lá em casa alguns anos– meu pai trabalhava agora no DNER.

Então, eu lia diariamente o Globo e alguns jornais que, esporadicamente, me caíam nas mãos, mormente o Jornal do Brasil. E foi justamente o jornal da Condessa Pereira Carneiro que me ofereceu um emprego de estagiário quando entrei na faculdade. Consultei o meu pai.

-Conheço a raça dos jornalistas, é a pior que existe.

Não, meu pai não mostrou um retrato desairoso da imprensa que influencia no processo do cotidiano das pessoas, como Balzac o fez no seu romance “As Ilusões Perdidas”, não porque não tinha o talento do escritor francês (quem tem?), mas porque se orgulhava de ser jornalista, verdade que ele nunca revelou, só a minha mãe sabia. Xingava da boca pra fora.

-Quanto você vai ganhar? - perguntou-me.

-Um pouco mais do que um salário-mínimo.

-Eu lhe dou esse dinheiro.

Não aceitei e dei início ao meu trabalho no Jornal do Brasil, logo em seguida, no prédio faraônico da Avenida Brasil 500.  Limpo demais, sem corre-corre, sem barulho de máquinas de escrever, sem buscas frenéticas de notícias, e sim por anunciantes. Uma decepção; foram as minhas ilusões perdidas.  Aguentei o estágio durante um ano. Aquilo não era o jornal em que eu estava impregnado desde a geração do meu avô.

 

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   

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