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quinta-feira, 11 de abril de 2013

2357 - farinha lírica


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4157                                   Data:  25 de  Março de 2013
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MINHA BIOGRAFIA MUSICAL CLÁSSICA

Minha biografia musical clássica se iniciou com as óperas. Meu pai entoava, na sua voz nada operística, algo parecido com “La donna e mobile”, inventando uma letra engraçada, e eu, bem garoto,  prestava atenção. O mesmo ele fazia com a ária do Fígaro de “O Barbeiro de Sevilha”. Meu pai, é bom que se diga, não se limitava a parodiar o que havia de mais popular no mundo da ópera, sintonizava o rádio nas árias de Verdi e Puccini, principalmente, e, com seriedade, tecia considerações abalizadas sobre as grandes vozes.
Mas o meu primeiro deslumbramento com o gênero lírico se deu através da televisão, em meado dos anos 50, quando eu fazia companhia à minha avó no seu casarão da Rua General Padilha. Na época, só existia um canal de televisão, a TV Tupi, então, Assis Chateaubriand não precisava se preocupar com a concorrência.
Foi assim que eu assisti ao trecho de um filme com a parte final de “Os Palhaços”, de Leoncavalo. Fiquei imediatamente encantado com aquele teatro musicado. Às vezes, entre um programa e outro, a TV Tupi preenchia o tempo com 40 minutos de comercial.
“Por que não colocam “Os Palhaços” de novo?” - eu perguntava à minha avó.
Havia também um programa operístico com artistas brasileiros, desses guardei na memória o barítono Paulo Fortes, porque diziam lá em casa que ele não deveria ficar no Brasil com a voz que tinha. Das árias cantadas, entesourei na memória algumas, principalmente a “Canção do Aventureiro”, do Guarany, talvez porque a minha patrioteira avó realçasse o fato de ser de autoria de um excepcional  compositor brasileiro.
Em casa, meu pai sintonizava a Rádio Guanabara, nas manhãs de domingo, para ouvir por uma hora “Cancioneiros Famosos”, de Januário Ferrari, em que canções napolitanas eram entoadas por Caruso, Tito Schipa, Beniamino Gigli, com uma ária de ópera como fecho de ouro.
De volta à casa da minha avó, que possuía uma televisão de 21 polegadas (a única da família nos anos 50), passei a ver mais óperas. Recordo da minha contrariedade quando tive de retornar para casa sem assistir ao “Romeu e Julieta”, programado para o dia seguinte. Confesso que, caso visse essa ópera, ficaria um pouco decepcionado, pois, nesse tempo, eu estava inteiramente tomado pela força dramática e passional dos italianos.
Quando fui crismado, em 1960, ganhei de um primo bem mais velho do que eu um LP do Ferruccio Tagliavini. Acredito que nunca ouvi na vida tanto um disco como esse. Quando não era eu, era o meu pai que o colocava na vitrola.
Em 1961, o grande tenor veio ao Brasil e cantou a Tosca no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, com transmissão radiofônica da Ministério da Educação e Cultura. Grudados no rádio, eu e meu pai, aguardávamos ansiosamente o “E lucevan le stelle.  Emitida  a última nota da ária, meu pai comentou, certamente estabelecendo a comparação com o disco, que não era o melhor Tagliavini, apesar dos aplausos de esfolar as mãos e o bis concedido pelo grande tenor. Felizmente, gravaram esta récita que ouvi há poucos anos, e constatei que  meu pai exagerara na crítica.
Já deixei de estudar na véspera de uma ópera para não perder o Otello com o Assis Pacheco. Os nomes dos cantores que eu vira na TV Tupi se tornavam agora familiares para mim.
A meio-soprano Maria Henriques apresentava um programa de óperas na Rádio Roquette Pinto, lá pelas 21 horas, em que levava um convidado que tinha o direito de escolher uma ópera completa. Não me esqueço da minha decepção quando optaram por “Salomé” de Richard Strauss.  Meus ouvidos ainda não estavam preparados.
É evidente que sempre sintonizava, com o meu pai, “Ópera Completa” de Zito Batista Filho – domingo, 17 horas – e fugíamos das óperas de Wagner, quando eram programadas; de Mozart também, confesso, envergonhado.
A temporada lírica internacional de 1964 foi um encantamento e chegou ao seu ponto alto quando a soprano Magda Olivero cantou, do Mefistófoles de Boito, “L' altra notte in fondo al mare”. Que aclamação! Que delírio! O grande baixo Cesare Siepi que, teoricamente, era o dono da ópera, sentiu tamanho ciúme que retornou para a Itália descumprindo seus compromissos profissionais.
Nunca ninguém cantou assim. - diz-me sempre a memória.
Ginasiano, eu estudava de manhã, assim, eu não perdia o programa “Trechos Lírico”, da Ida Bocchino, que ia das 14h 30min às 15 horas na hoje chamada Rádio MEC.
No dia do enterro do meu avô, “Trechos Líricos” programou apenas duetos de amor, neles, o preferido pelo parente morto: o do “Amico Fritz”, de Mascagni, com Tito Schipa e Mafalda Favero. Meu avô faleceu em 1963 e como meu pai era o único dos seus quatro filhos que herdara o gosto musical semelhante ao dele, os seus incontáveis discos de ópera e de canções italianas, em 78 rpm, de cera carnaúba, foram para a nossa casa. Eu parecia o personagem da “Montanha Mágica” de Thomas Mann, no sanatório, quando teve acesso ao fonógrafo. A parte final do 2° ato da Carmem de Bizet, um daqueles bolachões herdados, nunca me cansava, além da serenata de Arlequim com o Tito Schipa.
Sem perder o gosto pela ópera italiana e francesa (algumas), meus ouvidos passaram a exigir também outras músicas. O Prelúdio do Lohengrin de Wagner me fascinou, a Rapsódia Húngara nº 2 de Liszt se tornou uma obsessão. Vieram as obras de Tchaikovsky e,  particularmente, uma composição  de Berlioz que mexia muito com a minha imaginação, a  “Sinfonia Fantástica” com a sua ideia fixa.
Estava aberto o caminho para eu desfrutar as sinfonias de Beethoven. Quando o ex-presidente Castelo Branco morreu estranhamente em 19 de junho de 1967, não tomei champanhe como o já mudo e tetraplégico Assis Chateubriand, mas senti certa satisfação porque a Rádio Ministério da Educação, de luto, tocou durante toda a programação do dia as sinfonias de Beethoven.
A minha memória não determina com exatidão os anos em que eu não dormia sem ouvir antes o programa da meia-noite “Noturno”, que me deleitava com as obras dos grandes mestres da música. Esse programa tinha como tema a canção elizabethana, com o arranjo de Vaugham Williams, “Green Leaves”, que, até hoje, faz-me parar com tudo que estou fazendo para ouvi-la.
Eu sabia que Bach era o grande nome, mas muitas vezes, diante da sua música, eu era como a mariposa que rodeia a luz sem conseguir penetrá-la, usando uma imagem de Balzac. Eu era um diletante, sem bagagem de estudante de conservatório para conhecer na sua plenitude a genialidade de Bach. Paciência.
Um dia, já na casa dos vinte e tantos anos, ouvi a Primeira Sinfonia de Brahms; fiquei arrebatado. Não entendo até hoje por que Bernard Shaw, como crítico musical, desancou tanto o compositor alemão. Mais tarde, ele reconheceria que essas críticas estavam entre os maiores erros da sua vida.
E Mozart? Bem, meus ouvidos já estavam apurados para recebê-lo.
Estudando no Centro da cidade, fui a um sebão de discos e comprei um LP com a figura de Mozart na capa. Um lado era a Sinfonia Concertante para Violino e Viola K. 364, do outro, a Serena “Gran Partita”.
Descobri, assim, a música do compositor que mais me desvanece até hoje.
Numa minissérie sobre o filho dileto de Salzburgo, o compositor Michael Haydn, irmão de outro gênio, Joseph Haydn, diz para Mozart que ele compusera a música mais linda do mundo e assovia o andante da Sinfonia Concertante que citei.
O mundo mozartiano se abria para mim e hoje considero a sua ópera “Don Giovanni” como o ponto mais elevado do gênero.
A apresentação da 'Tristão e Isolda” de Wagner, no Teatro Municipal,  também exerceria um forte impacto sobre mim no início dos anos 80.
Com o passar dos anos, ficou mais refinado o meu gosto, mas nunca deixei de me emocionar com as óperas da minha fase infanto-juvenil, principalmente quando cantadas por Beniamino Gigli, Mario Del Monaco, Jussy Bjorlin, Maria Callas, Renata Tebaldi, Magda Olivero e tantos outros.
Como disse Orson Welles, “Considero a ópera a experiência do absoluto. A voz é um elemento comovente.”








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