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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4157 Data: 25 de
Março de 2013
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MINHA BIOGRAFIA MUSICAL CLÁSSICA
Minha biografia musical clássica se
iniciou com as óperas. Meu pai entoava, na sua voz nada operística, algo parecido
com “La donna e mobile”, inventando uma letra engraçada, e eu, bem garoto, prestava atenção. O mesmo ele fazia com a
ária do Fígaro de “O Barbeiro de Sevilha”. Meu pai, é bom que se diga, não se
limitava a parodiar o que havia de mais popular no mundo da ópera, sintonizava
o rádio nas árias de Verdi e Puccini, principalmente, e, com seriedade, tecia
considerações abalizadas sobre as grandes vozes.
Mas o meu primeiro deslumbramento com o
gênero lírico se deu através da televisão, em meado dos anos 50, quando eu
fazia companhia à minha avó no seu casarão da Rua General Padilha. Na época, só
existia um canal de televisão, a TV Tupi, então, Assis Chateaubriand não
precisava se preocupar com a concorrência.
Foi assim que eu assisti ao trecho de um
filme com a parte final de “Os Palhaços”, de Leoncavalo. Fiquei imediatamente
encantado com aquele teatro musicado. Às vezes, entre um programa e outro, a TV
Tupi preenchia o tempo com 40 minutos de comercial.
“Por que não colocam “Os Palhaços” de
novo?” - eu perguntava à minha avó.
Havia também um programa operístico com
artistas brasileiros, desses guardei na memória o barítono Paulo Fortes, porque
diziam lá em casa que ele não deveria ficar no Brasil com a voz que tinha. Das
árias cantadas, entesourei na memória algumas, principalmente a “Canção do
Aventureiro”, do Guarany, talvez porque a minha patrioteira avó realçasse o
fato de ser de autoria de um excepcional
compositor brasileiro.
Em casa, meu pai sintonizava a Rádio
Guanabara, nas manhãs de domingo, para ouvir por uma hora “Cancioneiros
Famosos”, de Januário Ferrari, em que canções napolitanas eram entoadas por
Caruso, Tito Schipa, Beniamino Gigli, com uma ária de ópera como fecho de ouro.
De volta à casa da minha avó, que
possuía uma televisão de 21
polegadas (a única da família nos anos 50), passei a ver
mais óperas. Recordo da minha contrariedade quando tive de retornar para casa
sem assistir ao “Romeu e Julieta”, programado para o dia seguinte. Confesso
que, caso visse essa ópera, ficaria um pouco decepcionado, pois, nesse tempo,
eu estava inteiramente tomado pela força dramática e passional dos italianos.
Quando fui crismado, em 1960, ganhei de
um primo bem mais velho do que eu um LP do Ferruccio Tagliavini. Acredito que
nunca ouvi na vida tanto um disco como esse. Quando não era eu, era o meu pai
que o colocava na vitrola.
Em 1961, o grande tenor veio ao Brasil e
cantou a Tosca no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, com transmissão
radiofônica da Ministério da Educação e Cultura. Grudados no rádio, eu e meu
pai, aguardávamos ansiosamente o “E lucevan le stelle. Emitida
a última nota da ária, meu pai comentou, certamente estabelecendo a
comparação com o disco, que não era o melhor Tagliavini, apesar dos aplausos de
esfolar as mãos e o bis concedido pelo grande tenor. Felizmente, gravaram esta
récita que ouvi há poucos anos, e constatei que
meu pai exagerara na crítica.
Já deixei de estudar na véspera de uma
ópera para não perder o Otello com o Assis Pacheco. Os nomes dos cantores que
eu vira na TV Tupi se tornavam agora familiares para mim.
A meio-soprano Maria Henriques
apresentava um programa de óperas na Rádio Roquette Pinto, lá pelas 21 horas, em
que levava um convidado que tinha o direito de escolher uma ópera completa. Não
me esqueço da minha decepção quando optaram por “Salomé” de Richard
Strauss. Meus ouvidos ainda não estavam
preparados.
É evidente que sempre sintonizava, com o
meu pai, “Ópera Completa” de Zito Batista Filho – domingo, 17 horas – e
fugíamos das óperas de Wagner, quando eram programadas; de Mozart também,
confesso, envergonhado.
A temporada lírica internacional de 1964
foi um encantamento e chegou ao seu ponto alto quando a soprano Magda Olivero
cantou, do Mefistófoles de Boito, “L' altra notte in fondo al mare”. Que aclamação!
Que delírio! O grande baixo Cesare Siepi que, teoricamente, era o dono da
ópera, sentiu tamanho ciúme que retornou para a Itália descumprindo seus
compromissos profissionais.
Nunca ninguém cantou assim. - diz-me sempre
a memória.
Ginasiano, eu estudava de manhã, assim,
eu não perdia o programa “Trechos Lírico”, da Ida Bocchino, que ia das 14h
30min às 15 horas na hoje chamada Rádio MEC.
No dia do enterro do meu avô, “Trechos
Líricos” programou apenas duetos de amor, neles, o preferido pelo parente morto:
o do “Amico Fritz”, de Mascagni, com Tito Schipa e Mafalda Favero. Meu avô
faleceu em 1963 e como meu pai era o único dos seus quatro filhos que herdara o
gosto musical semelhante ao dele, os seus incontáveis discos de ópera e de canções
italianas, em 78 rpm, de cera carnaúba, foram para a nossa casa. Eu parecia o
personagem da “Montanha Mágica” de Thomas Mann, no sanatório, quando teve
acesso ao fonógrafo. A parte final do 2° ato da Carmem de Bizet, um daqueles
bolachões herdados, nunca me cansava, além da serenata de Arlequim com o Tito
Schipa.
Sem perder o gosto pela ópera italiana e
francesa (algumas), meus ouvidos passaram a exigir também outras músicas. O
Prelúdio do Lohengrin de Wagner me fascinou, a Rapsódia Húngara nº 2 de Liszt se
tornou uma obsessão. Vieram as obras de Tchaikovsky e, particularmente, uma composição de Berlioz que mexia muito com a minha
imaginação, a “Sinfonia Fantástica” com
a sua ideia fixa.
Estava aberto o caminho para eu
desfrutar as sinfonias de Beethoven. Quando o ex-presidente Castelo Branco
morreu estranhamente em 19 de junho de 1967, não tomei champanhe como o já mudo
e tetraplégico Assis Chateubriand, mas senti certa satisfação porque a Rádio
Ministério da Educação, de luto, tocou durante toda a programação do dia as
sinfonias de Beethoven.
A minha memória não determina com
exatidão os anos em que eu não dormia sem ouvir antes o programa da meia-noite
“Noturno”, que me deleitava com as obras dos grandes mestres da música. Esse
programa tinha como tema a canção elizabethana, com o arranjo de Vaugham
Williams, “Green Leaves”, que, até hoje, faz-me parar com tudo que estou
fazendo para ouvi-la.
Eu sabia que Bach era o grande nome, mas
muitas vezes, diante da sua música, eu era como a mariposa que rodeia a luz sem
conseguir penetrá-la, usando uma imagem de Balzac. Eu era um diletante, sem
bagagem de estudante de conservatório para conhecer na sua plenitude a
genialidade de Bach. Paciência.
Um dia, já na casa dos vinte e tantos
anos, ouvi a Primeira Sinfonia de Brahms; fiquei arrebatado. Não entendo até
hoje por que Bernard Shaw, como crítico musical, desancou tanto o compositor
alemão. Mais tarde, ele reconheceria que essas críticas estavam entre os
maiores erros da sua vida.
E Mozart? Bem, meus ouvidos já estavam
apurados para recebê-lo.
Estudando no Centro da cidade, fui a um
sebão de discos e comprei um LP com a figura de Mozart na capa. Um lado era a
Sinfonia Concertante para Violino e Viola K. 364, do outro, a Serena “Gran
Partita”.
Descobri, assim, a música do compositor
que mais me desvanece até hoje.
Numa minissérie sobre o filho dileto de
Salzburgo, o compositor Michael Haydn, irmão de outro gênio, Joseph Haydn, diz
para Mozart que ele compusera a música mais linda do mundo e assovia o andante
da Sinfonia Concertante que citei.
O mundo mozartiano se abria para mim e
hoje considero a sua ópera “Don Giovanni” como o ponto mais elevado do gênero.
A apresentação da 'Tristão e Isolda” de
Wagner, no Teatro Municipal, também
exerceria um forte impacto sobre mim no início dos anos 80.
Com o passar dos anos, ficou mais
refinado o meu gosto, mas nunca deixei de me emocionar com as óperas da minha
fase infanto-juvenil, principalmente quando cantadas por Beniamino Gigli, Mario
Del Monaco, Jussy Bjorlin, Maria Callas, Renata Tebaldi, Magda Olivero e tantos
outros.
Como disse Orson Welles, “Considero a
ópera a experiência do absoluto. A voz é um elemento comovente.”
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