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sexta-feira, 5 de abril de 2013

2353 - o sobrinho que era filho

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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4153                                   Data:  21 de  Março de 2013
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84ª VISITA À MINHA CASA

-Hoffmann!... - vibrei.
-Não me diga que você só me conhece por causa dos “Contos de Hoffman”, ópera de Offenbach.
-Não. Sei que uma novela sua foi usada por Tchaikovsky no balé “O Quebra-Nozes”, que outra serviu de inspiração do balé “Coppelia”, de Leo Delibes, que o cavalo de batalha de muitos pianistas, a “Kreisleriana”, de Schumann, foi baseada no seu personagem Johannes Kreisler...
-Veja a ironia; sendo eu músico, não transformei em melodias imortais o que criei como escritor.
-Mas a sua aptidão intelectual me lembra muito a de Goethe; como ele, você foi jurista, pintor, desenhista, caricaturista, crítico de música, compositor. Se você não se destacou tanto nas ciências como Goethe, ele também não conhecia tanto a arte musical.
-Fomos contemporâneos.
-Eram alemães.
-Goethe nasceu em Weimar e eu em Königsberg, no Reino na Prússia.
 -Seu pai era advogado?
-Sim, também era poeta e músico amador: tocava viola da gamba. Ele se casou com a prima e tiveram três filhos, eu era o caçula e o segundo filho morreu na infância.
-O casamento não foi feliz?...
-Eles se separaram, em 1778, dois anos depois do meu nascimento. Meu pai foi de Königsberg para Insterburg, levando o primogênito. Minha mãe permaneceu na cidade comigo e se ligou ainda mais aos seus parentes. Fiquei com duas tias, Johanna Sophie Doerffer e Charlotte Wilhelmine Doerffer, e o irmão delas, Otto Wilhelm Doerffer. Todos solteirões.
-Você, então, foi o filho desses três?
-Um leve sorriso na comissura dos seus lábios foi a resposta afirmativa.
-Meu tio era o chefe da família. Eu o retratei numa peça com o nome O Weh.
-Você sentia falta do seu pai?
-Sentia, mas nunca deixei de me recordar das minhas tias com grande afeição, mormente da Tia Charlotte a que eu chamava de Tante Füsschen (tia de Pés Pequenos) (*).
-Tia de Pés de Boneca.
-Embora ela tenha morrido muito jovem, eu a entesourei na minha memória e a fantasiei, como personagem, em algumas das minhas obras.
-Vários estudiosos acreditaram que essa sua tia fora fruto da sua imaginação, mas, depois da Segunda Guerra Mundial, foi comprovada a sua existência.
-Não entendo porque demoraram tanto. - retorquiu.
-Sua família despertou a sua imaginação criativa, mas você teve de completar a sua educação num colégio.
-Frequentei uma escola luterana de 1781 a 1792, quando li vorazmente os clássicos. Aprendi também desenho, e um organista polonês chamado Podbileski, ensinou-me contraponto.
-Alguma dessas pessoas lhe inspirou algum personagem de uma obra sua?
-Meu professor de contraponto foi o modelo do personagem Abraham Liscot em Kater Murr.
-Soube que, enquanto você escrevia e desenhava, mostrava um grande talento de pianista.
-Sim, mas eu me achava numa província, longe de onde fervilhavam as ideias revolucionárias das artes alemã e europeia.
-Mas você lia Goethe, Schiller, Rousseau, Jean Paul, Swift e Sterne, além de escrever Der Geheimnisvolle.
-Sim.
-Não foi a época em que você conheceu o grande filósofo Immanuel Kant?
-Travei, em 1787, amizade para a vida inteira com Hippel, que era sobrinho do escritor e amigo do filósofo. Os dois se chamavam Theodor Gottlieb von Hippel, um era o jovem, o outro, o velho, para diferenciá-los.
-Você, então, conviveu com o autor de “A Crítica da Razão Pura”?
-Nada disso; assisti, com Hippel, às conferências dadas por Kant na Universidade de Köningsberg. Apesar da diferença de classe social, Hippel sempre me considerou seu grande amigo.
-Houve, certamente, uma enorme afinidade intelectual entre vocês.
Depois de uma pausa, perguntei-lhe:
-E a sua imaginação amorosa?
-Em 1794, com 18 anos de idade, apaixonei-me por Dora Hatt, uma mulher casada que tomava lições musicais comigo. Ela era dez anos mais velha do que eu e tinha uma filharada, cinco. A família dela protestou e um dos meus tios conseguiu um emprego para mim na cidade de Glogau, na Silésia.
-E qual era o emprego?
-Eu trabalhei como escrevente do meu tio Johann Ludwig Doerffer, que vivia em Glogau com a filha Mina. Foi quando passei por Dresden e visitei a galeria de pinturas. Fiquei embevecido com os quadros de Correggio e Rafael.
-Isso foi em 1796?
-Sim. No verão de 1798, meu tio foi transferido para a Corte de Berlim, uma promoção e fomos os três para lá.
-Você não se enamorou da sua jovem prima? - mostrei-me indiscreto.
-Nada a sério. - sorriu.
-Você estava, agora, na grande cidade da Prússia.
-Entusiasmado, compus a opereta Die Maske e enviei uma cópia para a Rainha Luise. A resposta dos seus conselheiros foi um conselho: escrever para o diretor da Ópera Real de nome Iffland.
-Uma maneira nobre de recusar a sua opereta.
-Fui para Posen, no sul da Prússia, com meu amigo Hippel, antes, parei em Dresden para rever as obras-primas da galeria.
-Você não havia encontrado ainda uma diretriz na vida?
-Meus tios, diretores de escola, párocos diziam que eu levava uma vida dissoluta. E eu, de 1800 a 1803, trabalhei na Grande Polônia e Masovia, províncias da Prússia. Pela primeira vez, eu me livrava da supervisão dos meus parentes.
E prosseguiu animadamente:
-Em Posen, caricaturei vários oficiais militares e as minhas caricaturas fizeram grande sucesso num baile de carnaval.
-Já imagino a confusão que arrumou.
-Houve denúncias contra mim às autoridades de Berlim e eu fui transferido para Plock, na Nova Prússia Oriental, cidade que foi capital da Polônia, de 1079 a 1138.
 -Visitei a cidade em busca de uma pousada para me alojar, mas, antes, casei-me, em Posen, com “Mischa”, Marianna Tekla Michalina Rorer. Fomos, em seguida, para a antiga capital da Polônia.
-A sua lua de mel foi em Plock.
-Lá, na verdade, foi meu exílio. Desenhei autorretratos na lama, andrajoso e com ratos ao redor.
-Era uma maneira de sublimar o seu desespero.
-O isolamento deu-me, no entanto, condições para escrever e compor. Iniciei um diário, redigi um ensaio teatral que foi publicado no periódico Die Freimüthige, e participei de uma competição com a peça Der Preis.
-Venceu?
-Selecionaram a minha peça, mas não deram para ninguém o prêmio. Foi um período triste da minha vida; morreram meu tio Hoffmann, em Berlim, a minha tia Sophie e  a minha amada Dora Hatt, em Köningsberg.
-E quando você foi trabalhar em Warsaw?
-Logo depois; passei por Königsberg, encontrei-me com as filhas de Dora Hatt e nunca mais revi a minha cidade natal.

(*) O redator do seu O BISCOITO MOLHADO escreveu Fübchen. Esse b aí é um beta na verdade e o som é de SS. Daí, o Distribuidor fez a substituição e pronto. Os alemães escrevem FüBchen, usando o B maiúsculo para simular o beta, mas nós não entendemos tal sutileza.

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