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sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

2324 - Miseráveis


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4124                         Data: 03  de fevereiro  de 2013
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SABADOIDO AINDA SEM SISO

No momento em que inflo os pulmões como um tenor que prepara o dó de peito, vejo a mão branca do Daniel que tentava com a munheca dobrada abrir o portão pelo lado de fora. Oculto pelo muro, segurei-lhe a mão. Ele não se assustou, tinha algo mais importante para temer.
-Estamos indo ao dentista, Carlinhos. Daniel vai extrair o siso. - informou-me a Gina, enquanto o portão era aberto para a saída deles e para a minha entrada.
-Você já não havia arrancado esses dentes?
-Há os sisos de baixo, Carlão.
-Pode ir; o Cláudio está na cozinha. - disse-me a Gina.
Meu irmão levantara uma barreira de páginas de jornal e imaginei que se abalasse um pouco se me visse à sua frente de maneira repentina, como aconteceu comigo ao ser visitado por Voltaire, Ernesto Nazaré, Jane Austen e outras figuras ilustres, por isso, me anunciei com a voz mansa.
-Senta aí. - foi o que respondeu sem abaixar as folhas do Globo.
A leitura do noticiário o deixava com o humor avinagrado.
-Renan presidente do Senado de novo...
-Eu, enquanto caminhava, ouvi no radinho de pilha o discurso do Collor xingando o procurador-geral da República de prevaricador. Antes ficar só como o Robinson Crusoé sem radinho de pilha, do Nélson Rodrigues, do que ouvir tanto cinismo.
-O culpado é o povo. - afirmou.
-O povo coloca essa gente no poder, e são mantidos na ignorância para continuar servindo a esses calhordas.
Falei, enquanto meu irmão dobrava o jornal e o colocava sobre a mesa.
Saímos então dos miasmas da política brasileira e entramos num assunto mais prazeroso: o cinema.
-Claudio, assisti, ontem, no Telecine Cult, a “Os Miseráveis”.
-Eu li que aproveitaram o lançamento do musical, que concorre ao Oscar desse ano e puseram a versão de 1952 do romance do Victor Hugo na programação da TV a cabo.
-A versão a que assisti foi a de 1935. - esclareci.
-E então?
-Claudio, o filme não tinha legendas e eu conheço a língua inglesa escrita, compulsando muitas vezes o Michaelis.
-Mas você conhece a história.
-Dos romances que li, “Os Miseráveis” é a obra que exerce maior atração sobre mim. Não quero afirmar que seja a criação máxima da literatura universal.
-E o filme?
-As palavras não tinham importância fundamental para mim, que conheço de cor e salteado o enredo. Havia os atores, a abordagem que deram para as 800 páginas do livro. Eu tinha, enfim, mais interesse em ver do que em ouvir.
-Então, valeu a pena.
-Claudio, primeiramente, eu me espantei com o Frederic March, o galã da fita no papel de Jean Valjean: alto, bonito. Tenho na minha mente o Frederic March de “O vento será tua herança”, careca, barrigudo, feioso, polemizando com o Spencer Tracy no julgamento do macaco.
-Nós vimos esse filme no Cinema Cachambi.
-Perguntei a mamãe sobre o tempo de galã do Frederic March e ela confirmou. Mamãe me disse que a única pessoa que ficou mais bonita depois que envelheceu foi o Caetano Veloso.
-Graças à última mulher dele, a Paula Lavigne. - ressaltou.
-Outro grande ator desse filme de 1935 é o Charles Laughton no papel do inspetor Javert.
-Ele é dos melhores. - observou.
-Nesse filme, notam-se alguns trejeitos afeminados, uns ademanes.
-Carlinhos, naquele filmaço em episódios da casaca que passa de mão em mão, ele também não se mostra muito viril.
-De qualquer maneira, Claudio, ele escondeu a bissexualidade, pois, quando a esposa soube, o trauma foi tamanho que ela ficou por um tempo muda.
-Sobre o Cole Porter, a mulher sabia da preferência sexual dele; foi embora, mas voltou quando ele caiu do cavalo.
-Com o maestro e compositor Leonard Bernstein, aconteceu algo parecido; a mulher foi e voltou, a diferença é que ele não caiu do cavalo.
Como o meu irmão se mostrava interessado, eu me ative nos artista de cinema que procuraram, nem sempre com sucesso, esconder o bissexualismo.
-Vincent Price, Montgomery Cliff, Rock Hudson, Sal Mineo, James Dean...
-Não se esqueça do Randolph Scott, Carlinhos. Ele era ligado a outro artista...
-O Cary Grant. - interrompi.
-O Cary Grant, não. - meu irmão não aceitou que se pusesse em dúvida a masculinidade do ator.
-Talvez, fossem mesmo grandes amigos, Claudio.
-Cary Grant, Gary Cooper...  não creio que não fossem homens.
-Um dos primeiros filmes do cinetoscópio de Thomas Edison, mostra dois homens dançando.
-Não era o cinematógrafo, Carlinhos?
-Os irmãos Lumière aperfeiçoaram o cinematógrafo do Thomas Edison. Conheço pouco disso... Eu sei que, num canal de TV a cabo, eu assisti a um documentário sobre o homossexualismo no cinema e vi essa cena de dois homens dançando, quando Thomas Edison ainda fazia experiências com o invento. Se já era o cinematógrafo, não sei.
Adiantamo-nos até o filme de 1935, já citado.
-A fita é fiel ao livro?
-Em menos de duas horas nenhum roteirista consegue abranger um romance de quase 800 páginas. O repelente Thénardier não aparece, nem a mulher, muito menos o Gavroche, um dos melhores personagens do Victor Hugo. Mas a Eponine é personagem, e é mostrada salvando a vida do Marius, quando o protegeu de um tiro com o próprio corpo.
-Eu vou ver o musical que, aliás, entrou em cartaz.
-Na célebre cena em que Jean Valjean carrega o Marius ferido nos ombros pelo esgoto de Paris, é mostrado no filme o Javert atrás dele.
-Mas o Javert não persegue o Jean Valjean pelo esgoto.
-No filme, ele recua diante dos obstáculos, mas, não tenho certeza absoluta, ele, no livro, nem colocou o pé no esgoto.
-Imagina o fedor, Carlinhos.
-Victor Hugo escreveu esse trecho depois de ter conseguido a planta do esgoto de Paris.
Meu irmão ergueu-se da cadeira dizendo que ia jogar alpiste para as rolinhas.
-O Daniel deixou o computador ligado para você. - avisou.
Diante do computador, acessei o facebook, onde se posta muitas coisas boas e ruins, até que voltei ao meu provedor. Lá se encontrava um vídeo do Dieckmann sobre os anos 50. Foram dez minutos de deleite (*). Antes de sair do computador, pensei nesse vídeo e disse para mim mesmo:
-Dieckmann ficou com crédito para eu lidar com a sua fanfarrice por mais dez anos.
Daniel voltou sem a mãe do dentista, mostrando disposição.
-Não arrancou o siso?...
-Arranquei.
-E não sente nada?
-Carlão, tomei três anestesias, estou sob o efeito delas.

(*) Curioso, o Distribuidor do seu O BISCOITO MOLHADO consultou o Dieckmann, que informou não ter a mais pálida ideia (em termos de Dieckmann, foi um assombro de resignação e humildade, talvez em função da entrevista que o Jonas Vieira e o Sergio Fortes marcaram com ele e que irá ao ar no domingo 24.02.2013, às 8 horas (**) do filme, visto que os filmes sobre os anos 50 são geralmente bem curtos.
Passamos então ao redator, o que significa uma espera de cerca de 6 a 7 dias, mas ele responderá.

(**) Na Rádio Roquette Pinto, FM 94.1

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