-------------------------------------------------------------
O BISCOITO MOLHADO
Edição 4124 Data: 03 de fevereiro
de 2013
-------------------------------------------------------------------
SABADOIDO AINDA SEM SISO
No momento em que inflo os pulmões como
um tenor que prepara o dó de peito, vejo a mão branca do Daniel que tentava com
a munheca dobrada abrir o portão pelo lado de fora. Oculto pelo muro,
segurei-lhe a mão. Ele não se assustou, tinha algo mais importante para temer.
-Estamos indo ao dentista, Carlinhos.
Daniel vai extrair o siso. - informou-me a Gina, enquanto o portão era aberto
para a saída deles e para a minha entrada.
-Você já não havia arrancado esses
dentes?
-Há os sisos de baixo, Carlão.
-Pode ir; o Cláudio está na cozinha. -
disse-me a Gina.
Meu irmão levantara uma barreira de
páginas de jornal e imaginei que se abalasse um pouco se me visse à sua frente
de maneira repentina, como aconteceu comigo ao ser visitado por Voltaire,
Ernesto Nazaré, Jane Austen e outras figuras ilustres, por isso, me anunciei
com a voz mansa.
-Senta aí. - foi o que respondeu sem
abaixar as folhas do Globo.
A leitura do noticiário o deixava com o
humor avinagrado.
-Renan presidente do Senado de novo...
-Eu, enquanto caminhava, ouvi no radinho
de pilha o discurso do Collor xingando o procurador-geral da República de
prevaricador. Antes ficar só como o Robinson Crusoé sem radinho de pilha, do
Nélson Rodrigues, do que ouvir tanto cinismo.
-O culpado é o povo. - afirmou.
-O povo coloca essa gente no poder, e
são mantidos na ignorância para continuar servindo a esses calhordas.
Falei, enquanto meu irmão dobrava o
jornal e o colocava sobre a mesa.
Saímos então dos miasmas da política
brasileira e entramos num assunto mais prazeroso: o cinema.
-Claudio, assisti, ontem, no Telecine
Cult, a “Os Miseráveis”.
-Eu li que aproveitaram o lançamento do
musical, que concorre ao Oscar desse ano e puseram a versão de 1952 do romance
do Victor Hugo na programação da TV a cabo.
-A versão a que assisti foi a de 1935.
- esclareci.
-E então?
-Claudio, o filme não tinha legendas e
eu conheço a língua inglesa escrita, compulsando muitas vezes o Michaelis.
-Mas você conhece a história.
-Dos romances que li, “Os Miseráveis” é
a obra que exerce maior atração sobre mim. Não quero afirmar que seja a criação
máxima da literatura universal.
-E o filme?
-As palavras não tinham importância
fundamental para mim, que conheço de cor e salteado o enredo. Havia os atores,
a abordagem que deram para as 800 páginas do livro. Eu tinha, enfim, mais
interesse em ver do que em ouvir.
-Então, valeu a pena.
-Claudio, primeiramente, eu me espantei
com o Frederic March, o galã da fita no papel de Jean Valjean: alto, bonito.
Tenho na minha mente o Frederic March de “O vento será tua herança”, careca,
barrigudo, feioso, polemizando com o Spencer Tracy no julgamento do macaco.
-Nós vimos esse filme no Cinema
Cachambi.
-Perguntei a mamãe sobre o tempo de
galã do Frederic March e ela confirmou. Mamãe me disse que a única pessoa que
ficou mais bonita depois que envelheceu foi o Caetano Veloso.
-Graças à última mulher dele, a Paula
Lavigne. - ressaltou.
-Outro grande ator desse filme de 1935
é o Charles Laughton no papel do inspetor Javert.
-Ele é dos melhores. - observou.
-Nesse filme, notam-se alguns trejeitos
afeminados, uns ademanes.
-Carlinhos, naquele filmaço em
episódios da casaca que passa de mão em mão, ele também não se mostra muito
viril.
-De qualquer maneira, Claudio, ele
escondeu a bissexualidade, pois, quando a esposa soube, o trauma foi tamanho
que ela ficou por um tempo muda.
-Sobre o Cole Porter, a mulher sabia da
preferência sexual dele; foi embora, mas voltou quando ele caiu do cavalo.
-Com o maestro e compositor Leonard
Bernstein, aconteceu algo parecido; a mulher foi e voltou, a diferença é que
ele não caiu do cavalo.
Como o meu irmão se mostrava
interessado, eu me ative nos artista de cinema que procuraram, nem sempre com
sucesso, esconder o bissexualismo.
-Vincent
Price, Montgomery Cliff, Rock Hudson, Sal Mineo, James Dean...
-Não se esqueça do Randolph Scott,
Carlinhos. Ele era ligado a outro artista...
-O Cary Grant. - interrompi.
-O Cary Grant, não. - meu irmão não
aceitou que se pusesse em dúvida a masculinidade do ator.
-Talvez, fossem mesmo grandes amigos,
Claudio.
-Cary Grant, Gary Cooper... não creio que não fossem homens.
-Um dos primeiros filmes do
cinetoscópio de Thomas Edison, mostra dois homens dançando.
-Não era o cinematógrafo, Carlinhos?
-Os irmãos Lumière aperfeiçoaram o cinematógrafo
do Thomas Edison. Conheço pouco disso... Eu sei que, num canal de TV a cabo, eu
assisti a um documentário sobre o homossexualismo no cinema e vi essa cena de
dois homens dançando, quando Thomas Edison ainda fazia experiências com o
invento. Se já era o cinematógrafo, não sei.
Adiantamo-nos até o filme de 1935, já
citado.
-A fita é fiel ao livro?
-Em menos de duas horas nenhum
roteirista consegue abranger um romance de quase 800 páginas. O repelente
Thénardier não aparece, nem a mulher, muito menos o Gavroche, um dos melhores
personagens do Victor Hugo. Mas a Eponine é personagem, e é mostrada salvando a
vida do Marius, quando o protegeu de um tiro com o próprio corpo.
-Eu vou ver o musical que, aliás,
entrou em cartaz.
-Na célebre cena em que Jean Valjean
carrega o Marius ferido nos ombros pelo esgoto de Paris, é mostrado no filme o
Javert atrás dele.
-Mas o Javert não persegue o Jean
Valjean pelo esgoto.
-No filme, ele recua diante dos
obstáculos, mas, não tenho certeza absoluta, ele, no livro, nem colocou o pé no
esgoto.
-Imagina o fedor, Carlinhos.
-Victor Hugo escreveu esse trecho
depois de ter conseguido a planta do esgoto de Paris.
Meu irmão ergueu-se da cadeira dizendo
que ia jogar alpiste para as rolinhas.
-O Daniel deixou o computador ligado
para você. - avisou.
Diante do computador, acessei o facebook,
onde se posta muitas coisas boas e ruins, até que voltei ao meu provedor. Lá se
encontrava um vídeo do Dieckmann sobre os anos 50. Foram dez minutos de deleite
(*). Antes de sair do computador, pensei nesse vídeo e disse para mim mesmo:
-Dieckmann ficou com crédito para eu
lidar com a sua fanfarrice por mais dez anos.
Daniel voltou sem a mãe do dentista,
mostrando disposição.
-Não arrancou o siso?...
-Arranquei.
-E não sente nada?
-Carlão, tomei três anestesias, estou
sob o efeito delas.
(*) Curioso,
o Distribuidor do seu O BISCOITO MOLHADO consultou o Dieckmann, que informou
não ter a mais pálida ideia (em termos de Dieckmann, foi um assombro de
resignação e humildade, talvez em função da entrevista que o Jonas Vieira e o
Sergio Fortes marcaram com ele e que irá ao ar no domingo 24.02.2013, às 8
horas (**) do filme, visto que os filmes sobre os anos 50 são geralmente bem
curtos.
Passamos
então ao redator, o que significa uma espera de cerca de 6 a 7 dias, mas ele responderá.
(**) Na Rádio
Roquette Pinto, FM 94.1
Nenhum comentário:
Postar um comentário