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quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

2322 - o Mané

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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4122                                Data: 31  de janeiro  de 2013
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CONVERSAS DE TÁXI nº 156

-Eu assisti à partida do Barcelona contra o Málaga e disse comigo mesmo: era assim que os brasileiros jogavam nas décadas passadas, mas, agora, jogam como os europeus de antigamente, com correria desenfreada e muitas faltas.
O taxista que, pela pouca idade, não viu o futebol do Brasil de Nilton Santos, Didi, Gérson, Tostão, ouviu-me e se limitou-se a enaltecer a equipe catalã.
-Eles são sinistros: Messi, Iniesta, Xavi... O Iniesta protege a bola com tal perfeição que ninguém tira dele.
E passou a falar do jogo do Botafogo e Bangu, interrompendo-se, para prosseguir na sua narrativa, informando que era botafoguense.
-Eu também sou.
-Fui ao estádio de Moça Bonita. O campo tem as maiores dimensões permitidas pela FIFA e os jogadores do Botafogo estão acostumados com campos menores, como o do Engenhão. Eles querem marcar sob pressão, o time do Bangu vira o jogo (passa a bola da direita para a esquerda, ou vice-versa, com longos lançamentos) e a tática do Botafogo fracassa.
Percebendo que ele não era um torcedor carente de massa cinzenta, animei-o a continuar.
-O Botafogo, no final do brasileirão do ano passado, deu uma arrancada e por pouco não conseguiu uma vaga para a Libertadores das Américas.
-O Bruno Mendes encaixou no ataque, depois que o Herrera e o Loco Abreu foram embora. Contra o Bangu, ele não fez nada como fracassou com toda essa seleção sub-20. - comentei.
-E o técnico Osvaldo de Oliveira ainda bateu boca com o Loco Abreu, que o criticou do Uruguai.
-Loco Abreu é página virada, mas a torcida gosta dele; foi uma besteira o técnico responder as críticas do jogador, nós ficamos com mais raiva ainda do Osvaldo de Oliveira. - disse ele.
-O Osvaldo de Oliveira disse que esteve no Maracanã no célebre Fla x Flu de 1963, recorde de público de jogos de clubes no mundo; eu também lá estive e com um irmão.
Ele não tinha idade para essas recordações, mas também entrou no passado do futebol.
-Conheço um senhor que foi árbitro de futebol; ele me disse que se esforçava ao máximo para não rir quando o Garrincha driblava os adversários.
-O técnico do Botafogo, chamando os jogadores para a preleção, dizia para o Garrincha: “Você, não”; e o Garrincha respondia: “Não mande ninguém cair nas costas do lateral esquerdo porque eu vou driblar também”.
-Quem foi esse? - agucei-lhe a curiosidade.
-O João Saldanha.
-Esse senhor me disse que o Garrincha foi melhor do que o Pelé.
Não me mostrei entusiasmado com essa comparação.
-Pelé se encontra num patamar inatingível, mas Garrincha também, o problema dele foi não encarar a profissão com a seriedade do Pelé. Quando o camisa 10 se machucou, no segundo jogo da Copa de 62, Garrincha se desdobrou: fez gol de falta, de cabeça, deu dribles como nunca.
-Jogou por ele e pelo Pelé. - acrescentou o taxista.
-Aquela seleção campeã no mundo de 1962, no Chile, era constituída da metade do time do Botafogo: Nilton Santos, Garrincha, Didi, Amarildo e Zagalo.
Às minhas palavras, os olhos dele de botafoguense faiscaram.
-Esse feito só foi igualado e mesmo superado, pelo Barcelona, nessa Copa de 2010, na África do Sul. Sem esquecer que, caso a Hungria ganhasse a Copa do Mundo de 1954, o Honved teria atingido esse recorde.
-O pessoal fala que, no futebol de hoje, o Garrincha não seria o mesmo...
-Bobagem! – exclamei, aproveitando as suas reticências – O meu pai guardava as revistas das Copas do Mundo ganhadas pelo Brasil, e, numa delas, você vê, a fotografia, que mostra nove jogadores: o Garrincha com a bola nos pés e oito espanhóis.
Entusiasmado de novo, comentou que o Garrincha não deveria correr atrás do adversário para tomar-lhe a bola.
-Essa é a razão de o futebol brasileiro ter se europeizado: os craques do ataque  são obrigados a marcar os beques adversários, então, o jogo fica feio, truncado com várias faltas, correrias...
-Com o time do Barcelona de hoje, quem corre é a bola. - manifestou-se.
-É verdade que, mesmo o Messi, acossa os beques que estão com a bola, mas o Garrincha, como eu disse, foi um jogador diferenciado.
-Eu tenho vontade de ver mais filmes dos confrontos do passado. - lamentou.
-Os brasileiros prezam muito pouco a memória. A filmagem do gol de placa do Pelé, em que ele driblou quase todo o time do Fluminense desde o meio do campo, foi apagada porque gravaram uma novela por cima da fita (*). Do Garrincha, quase nada ficou registrado. Existe o acervo do Canal 100 do Carlinhos Niemeyer, com filmes que eram exibidos nos cinemas, na década de 90; apareceu na televisão, mas por pouco tempo.
Como eu pegara o táxi da minha casa até o meu trabalho, a conversa se estendeu do presente ao passado e vice-versa.
-O Botafogo vai jogar outras vezes em Moça Bonita. - demonstrou inquietação.
-Estamos em início de temporada. Com o Seedorf no time, o Botafogo melhora muito. - animei-o.
-Amigo, eu tenho um coração muito forte, por isso sou botafoguense. - confessou, enquanto eu saltava do seu táxi na Avenida Rio Branco.

Tem aparecido uns taxistas desconhecidos para mim no ponto da Domingo de Magalhães. Entrei no táxi de um deles, informando que o meu destino era a Modigliani, próxima a Praça Manet, no segundo poste depois de dobrada a Rua Sisley.
Minha pressão arterial estava baixa, certamente, pois eu me sentia meio prostrado; assim, fechei os olhos como se meditasse.
-Eu ainda estudei latim no primeiro ano ginasial, depois, tiraram do currículo escolar. - manifestou-se.
-Nós estudávamos francês, inglês e havia ainda o latim.
-Mas o latim, como é a raiz de tantas línguas, tinha de ser estudada com profundidade. - afirmou com veemência.
-Sim, eu acompanho o ensino de português feito pelo Pasquale Cipro Neto, na mídia, mas confio bem mais nos velhos latinistas que sabem o porquê das questões gramaticais da nossa língua.
-Isso! Há verbos transitivos diretos e indiretos porque cada caso pertence a uma declinação em latim. - disse ele.
-Você ainda se recordas das cinco declinações?
-Nominativo, vocativo, genitivo, dativo e acusativo. - respondeu sem pestanejar.
-O alemão culto procedeu da tradução que Lutero fez da Bíblia do latim para a língua alemã.
-A igreja católica monopolizava a cultura recorrendo à língua latina. Com o cisma do catolicismo, protagonizado por Lutero, ele democratizou a cultura, e essa tradução para o alemão foi o começo. - interveio.
Retomei a palavra:
-Lutero usou quatro declinações latinas, só tirou o vocativo. Depois, escritores como Goethe e Schiller consolidaram o alemão culto. Poucos, na própria Alemanha, lidam com o seu idioma sem cometer erros.
-No Brasil, também. Não se estuda mais latim. (**)
Foi isso mesmo que o taxista falou? Escutei, na verdade, um ríspido “Já chegamos”, que me tirou do torpor.

(*) Eu vi esse gol. Foi inacreditável. Creio que vi sem videoteipe, mas não posso jurar.
(**) Algo me diz que escapei por um triz, disse, rimando, o Dieckmann




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