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quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

2318 - ironia e conspiração


O BISCOITO MOLHADO
Edição 4118                             Data: 23  de janeiro  de 2013
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79ª VISITA À MINHA CASA

-Sêneca?!...
-O Jovem, não o Velho. - esclareceu-me.
-Ah, sim, seu pai também se destacou como um grande intelectual.
-Sêneca, o Velho, como ficou conhecido meu pai, possuía o dom de orador que se espalhou pelo Império Romano.
-A sua família era privilegiada; seu irmão mais velho, Lúcio Júnior Gálio, além de cultivar os estudos, foi procônsul. E ainda havia o seu sobrinho, o poeta Lucano.
-Meu pai, que era rico, não permitiu que os filhos tivessem seus espíritos afrouxados pelo dinheiro e nos fez estudar muito. Sou-lhe grato por isso.
-Foi quando você tinha três anos de idade, mesmo, que ele deu início ao seu aprendizado? - indaguei.
-Sim, enviou-me para Roma com essa idade para eu estudar oratória e filosofia. Dediquei-me tanto aos livros que minha saúde ficou abalada. Fui para o Egito em busca da recuperação.
-E a sua volta a Roma?
-Deu-se em 31, quando eu contava 35 anos de idade; foi quando começou a minha carreira de orador e de advogado até minha entrada no Senado,
-Você é, então, quatro anos mais velho do que Jesus Cristo?
-Não fui eu e sim, Lúcio Aneu Sêneca, que conheceu Saulo e, com ele, trocou correspondência.
Saulo, o grego que tinha cidadania romana e se tornou, para a posteridade, São Paulo. - pensei, enquanto ele prosseguia.
-Saulo possuía uma formidável inteligência; poderia cultivar a filosofia, mas derivou para a religião e fez surgir o cristianismo. Saulo, no entanto, foi influenciado pelo estoicismo, nossa filosofia e a levou para os cristãos.
-Grosso modo, o estoicismo prega uma vida modesta mesmo sendo rico.
-Você não está errado. - disse.
-Dez anos depois do seu retorno a Roma, você se envolveu amorosamente com a sobrinha do imperador Cláudio, Júlia Livila?
-Ele me exilou por isso. No desterro, escrevi muitos tratados filosóficos e expus o objetivo do estoicismo como filosofia, uma vida de renúncia aos bens materiais e a busca da tranquilidade do espírito mediante o conhecimento e a contemplação. 
-Ideias essas que São Paulo levou aos cristãos?
-Não sei, eu não tinha muito interesse em seitas religiosas, embora, tivesse, mais tarde, de lidar politicamente com os cristãos que, em Roma, se multiplicavam.
-E quando você pôde pisar a terra romana novamente?
-Em 49, graças à força de persuasão de Agripina, também sobrinha do imperador Cláudio.
-Você dava muita sorte com as sobrinhas do imperador. - não perdi a piada.
 -Agripina, a jovem, além de sobrinha do imperador, foi uma das suas esposas. Da minha parte, contraí matrimônio com Pompeia Paulina.
-Vê-se, então, que Agripina não sentia atração física por você, o interesse dela era pela sua inteligência.
-Ela me queria para preceptor do seu filho Nero.
Ao nome Nero, estremeci, mas o filósofo prosseguiu com naturalidade.
-No ano seguinte, graças à influência dela, eu me tornei pretor.
-Pretor era o funcionário da justiça que recebia as queixas dos cidadãos romanos e decidia quais eram válidas e as despachava para serem julgadas pelos juízes?
-Isso mesmo. Quando assumíamos o cargo, publicávamos um édito, ordem judicial que se afixa em lugares públicos, em que estabelecíamos o nosso modo de interpretação para conceder julgamentos. Um novo pretor copiava ou melhorava o édito do anterior.
-Você, logicamente, melhorou.
Ouviu meu comentário e prossegui:
-E o imperador Claudio , que o desterrara, permitiu, digamos, a sua reabilitação?
-Ele morreu, quatro anos depois, em 54. Vinguei-me com um texto, modéstia à parte, que é uma das melhores obras da sátira romana.
-Não é modéstia, Sêneca, os estudiosos da literatura da antiga Roma são unânimes em enaltecer esse seu trabalho.
-Apocolocyntosis divi Claudii. - disse ele entusiasmado.
-Por favor, Sêneca, não diga o nome da sua sátira em latim, pois apenas dois amigos meus, o Dieckmann e a Rosa Grieco, conhecem bem a sua língua.
“Transformação em abóbora do divino Cláudio”. - atendeu o meu pedido.
-O ódio que você nutria pelo imperador não esmoreceu, mesmo com a permissão que ele deu à sua sobrinha e esposa de reabilitá-lo.
-A decisão de exilar-me foi truculenta demais, nem meu irmão, Lúcio Júnio Gálio o perdoou e também redigiu um texto em que satiriza marcantemente o imperador Cláudio.
-Você e seu irmão não compraram uma briga com os adeptos do imperador?
-Apesar de ele ter expandido o império romano, não tinha amigos a ponto de matar por ele. - frisou.
-Bem, o imperador foi envenenado e muitos afirmam que foi Agripina que o matou para que o seu filho Nero o substituísse.
-Bem, o certo é que Nero, aos dezessete anos de idade se tornou imperador.
-E ele continuava seu discípulo?
-Éramos os pedagogos do imperador Nero eu e Afrânio Burro.
-Sêneca, com esse sobrenome Afrânio estaria liquidado nas terras em que se fala o português. - comentei com um sorriso na comissura dos lábios.
-Não, Burro era inteligentíssimo, ajudou-me muito a controlar a fera que subira ao poder.
-Durante um curto tempo. - contrapus.
-Durante os primeiros sete anos. Nós o orientamos para a realização de uma política justa e humanitária, mas, depois, a sua índole de crueldade brotou e ele se tornou incontrolável.
-Nero matou Agripina, a própria mãe. - lembrei com horror.
-Eu escrevi uma carta ao Senado explicando que Agripina se tornara extremamente ambiciosa, que queria governar, planejando transformar o filho numa figura decorativa.
-Então, você concordou com o matricídio?
-Nunca! Eu e Afrânio Burro falamos severamente com Nero para não chegar a atitudes extremas contra a sua mãe.
-Os seus opositores aproveitaram os acontecimentos para criticá-lo pela sua tíbia oposição à tirania do imperador e por ter acumulado riqueza o que ia de encontro à sua filosofia estoica.
-Fui injustiçado. Vivi com alguma riqueza, mas de maneira frugal de acordo com o estoicismo que eu pregava.
-Com as barbaridades cometidas por Nero, você, evidentemente, não continuou do lado dele?
-Afastei-me da vida pública logo em seguida. Dediquei-me ao trabalho intelectual; escrevi “Problemas naturais”, os tratados “Sobre a tranquilidade da alma”, “Sobre a vida beata'', sem falar nas cartas que dirigi ao meu sobrinho Lucílio, com conselhos estoicos e em que preguei a fraternidade universal, como aos cristãos que Nero entregou aos leões no Coliseu.
-A sua morte não foi natural.
-Não, acusaram-me de participar de uma conspiração contra Nero, obrigaram-me a cometer suicídio. Diante dos meus amigos, eu e minha esposa cortamos os pulsos.  Tácito, que se destacou como historiador, escreveu sobre meus últimos momentos.
-Afirmam que você recebeu a morte com a mesma serenidade de Sócrates.
Ouviu as minhas palavras e se foi.

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