O BISCOITO MOLHADO
Edição 4118 Data: 23 de janeiro
de 2013
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79ª VISITA À MINHA CASA
-Sêneca?!...
-O Jovem, não o Velho. - esclareceu-me.
-Ah, sim, seu pai também se destacou como um grande
intelectual.
-Sêneca, o Velho, como ficou conhecido meu pai,
possuía o dom de orador que se espalhou pelo Império Romano.
-A sua família era privilegiada; seu irmão mais velho,
Lúcio Júnior Gálio, além de cultivar os estudos, foi procônsul. E ainda havia o
seu sobrinho, o poeta Lucano.
-Meu pai, que era rico, não permitiu que os filhos
tivessem seus espíritos afrouxados pelo dinheiro e nos fez estudar muito.
Sou-lhe grato por isso.
-Foi quando você tinha três anos de idade, mesmo, que
ele deu início ao seu aprendizado? - indaguei.
-Sim, enviou-me para Roma com essa idade para eu
estudar oratória e filosofia. Dediquei-me tanto aos livros que minha saúde ficou
abalada. Fui para o Egito em busca da recuperação.
-E a sua volta a Roma?
-Deu-se em 31, quando eu contava 35 anos de idade; foi
quando começou a minha carreira de orador e de advogado até minha entrada no
Senado,
-Você é, então, quatro anos mais velho do que Jesus
Cristo?
-Não fui eu e sim, Lúcio Aneu Sêneca, que conheceu
Saulo e, com ele, trocou correspondência.
Saulo, o grego que tinha cidadania romana e se tornou,
para a posteridade, São Paulo. - pensei, enquanto ele prosseguia.
-Saulo possuía uma formidável inteligência; poderia
cultivar a filosofia, mas derivou para a religião e fez surgir o cristianismo.
Saulo, no entanto, foi influenciado pelo estoicismo, nossa filosofia e a levou
para os cristãos.
-Grosso modo, o estoicismo prega uma vida modesta
mesmo sendo rico.
-Você não está errado. - disse.
-Dez anos depois do seu retorno a Roma, você se
envolveu amorosamente com a sobrinha do imperador Cláudio, Júlia Livila?
-Ele me exilou por isso. No desterro, escrevi muitos
tratados filosóficos e expus o objetivo do estoicismo como filosofia, uma vida
de renúncia aos bens materiais e a busca da tranquilidade do espírito mediante
o conhecimento e a contemplação.
-Ideias essas que São Paulo levou aos cristãos?
-Não sei, eu não tinha muito interesse em seitas
religiosas, embora, tivesse, mais tarde, de lidar politicamente com os cristãos
que, em Roma, se multiplicavam.
-E quando você pôde pisar a terra romana novamente?
-Em 49, graças à força de persuasão de Agripina,
também sobrinha do imperador Cláudio.
-Você dava muita sorte com as sobrinhas do imperador.
- não perdi a piada.
-Agripina, a
jovem, além de sobrinha do imperador, foi uma das suas esposas. Da minha parte,
contraí matrimônio com Pompeia Paulina.
-Vê-se, então, que Agripina não sentia atração física
por você, o interesse dela era pela sua inteligência.
-Ela me queria para preceptor do seu filho Nero.
Ao nome Nero, estremeci, mas o filósofo prosseguiu com
naturalidade.
-No ano seguinte, graças à influência dela, eu me
tornei pretor.
-Pretor era o funcionário da justiça que recebia as
queixas dos cidadãos romanos e decidia quais eram válidas e as despachava para
serem julgadas pelos juízes?
-Isso mesmo. Quando assumíamos o cargo, publicávamos
um édito, ordem judicial que se afixa em lugares públicos, em que
estabelecíamos o nosso modo de interpretação para conceder julgamentos. Um novo
pretor copiava ou melhorava o édito do anterior.
-Você, logicamente, melhorou.
Ouviu meu comentário e prossegui:
-E o imperador Claudio , que o desterrara, permitiu,
digamos, a sua reabilitação?
-Ele morreu, quatro anos depois, em 54. Vinguei-me com
um texto, modéstia à parte, que é uma das melhores obras da sátira romana.
-Não é modéstia, Sêneca, os estudiosos da literatura
da antiga Roma são unânimes em enaltecer esse seu trabalho.
-Apocolocyntosis divi Claudii. - disse ele
entusiasmado.
-Por favor, Sêneca, não diga o nome da sua sátira em
latim, pois apenas dois amigos meus, o Dieckmann e a Rosa Grieco, conhecem bem
a sua língua.
“Transformação em abóbora do divino Cláudio”. -
atendeu o meu pedido.
-O ódio que você nutria pelo imperador não esmoreceu,
mesmo com a permissão que ele deu à sua sobrinha e esposa de reabilitá-lo.
-A decisão de exilar-me foi truculenta demais, nem meu
irmão, Lúcio Júnio Gálio o perdoou e também redigiu um texto em que satiriza
marcantemente o imperador Cláudio.
-Você e seu irmão não compraram uma briga com os
adeptos do imperador?
-Apesar de ele ter expandido o império romano, não
tinha amigos a ponto de matar por ele. - frisou.
-Bem, o imperador foi envenenado e muitos afirmam que
foi Agripina que o matou para que o seu filho Nero o substituísse.
-Bem, o certo é que Nero, aos dezessete anos de idade
se tornou imperador.
-E ele continuava seu discípulo?
-Éramos os pedagogos do imperador Nero eu e Afrânio
Burro.
-Sêneca, com esse sobrenome Afrânio estaria liquidado
nas terras em que se fala o português. - comentei com um sorriso na comissura
dos lábios.
-Não, Burro era inteligentíssimo, ajudou-me muito a
controlar a fera que subira ao poder.
-Durante um curto tempo. - contrapus.
-Durante os primeiros sete anos. Nós o orientamos para
a realização de uma política justa e humanitária, mas, depois, a sua índole de
crueldade brotou e ele se tornou incontrolável.
-Nero matou Agripina, a própria mãe. - lembrei com
horror.
-Eu escrevi uma carta ao Senado explicando que
Agripina se tornara extremamente ambiciosa, que queria governar, planejando
transformar o filho numa figura decorativa.
-Então, você concordou com o matricídio?
-Nunca! Eu e Afrânio Burro falamos severamente com
Nero para não chegar a atitudes extremas contra a sua mãe.
-Os seus opositores aproveitaram os acontecimentos
para criticá-lo pela sua tíbia oposição à tirania do imperador e por ter
acumulado riqueza o que ia de encontro à sua filosofia estoica.
-Fui injustiçado. Vivi com alguma riqueza, mas de
maneira frugal de acordo com o estoicismo que eu pregava.
-Com as barbaridades cometidas por Nero, você,
evidentemente, não continuou do lado dele?
-Afastei-me da vida pública logo em seguida. Dediquei-me
ao trabalho intelectual; escrevi “Problemas naturais”, os tratados “Sobre a
tranquilidade da alma”, “Sobre a vida beata'', sem falar nas cartas que dirigi
ao meu sobrinho Lucílio, com conselhos estoicos e em que preguei a fraternidade
universal, como aos cristãos que Nero entregou aos leões no Coliseu.
-A sua morte não foi natural.
-Não, acusaram-me de participar de uma conspiração
contra Nero, obrigaram-me a cometer suicídio. Diante dos meus amigos, eu e
minha esposa cortamos os pulsos. Tácito,
que se destacou como historiador, escreveu sobre meus últimos momentos.
-Afirmam que você recebeu a morte com a mesma
serenidade de Sócrates.
Ouviu as minhas palavras e se foi.
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