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sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

2316 - a cascata do Nazareth


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4116                             Data: 20  de janeiro  de 2013
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78ª VISITA À MINHA CASA

-O homem célebre... - foram essas palavras que me vieram à mente quando dei de rosto com o Ernesto Nazareth.
-Por que “o homem célebre”? - intrigou-se.
-Refiro-me a um conto de Machado de Assis sobre um compositor, de nome Pestana, que obtinha formidável sucesso popular com as suas polcas, mas que sofria de uma terrível frustração porque não conseguia compor uma música erudita.
-Eu não vou negar que sempre cultivei o sonho de compor como Chopin.
-Machado de Assis usa uma metáfora engenhosa para ilustrar mais uma frustração do seu personagem em compor algo que o equiparasse aos grandes mestres: “mergulhava naquele Jordão sem sair batizado”.
-Eu passava horas no piano, tocando Chopin, vinha-me uma ideia, e eu compunha uma polca, um tango brasileiro, depois rotularam tudo como choro. Eu só não admitia que chamassem minhas composições de maxixe.
-Nazareth, lá pelo início da década de 20, ou final da de 10, você foi apresentado a Arthur Rubinstein, um dos maiores pianistas do século. Quando lhe pediram para tocar ele, você executou uma peça de Chopin. - acentuei as três últimas palavras com tons de reprovação.
-Logo me interromperam e me pediram que tocasse músicas minhas.
- Arthur Rubinstein estava enfarado de Chopin, ele queria que uma música nova lhe chegasse aos ouvidos. - enfatizei.
- Confesso que senti que era uma ousadia minha mostrar as minhas composições diante do maior intérprete vivo do compositor polonês.
-Recentemente, o sucessor do Antônio Carlos Jobim, o Edu Lobo, tocou no seu piano, numa exposição, com o propósito de ser contagiado pelo seu talento.
Ernesto Nazareth não mostrou muito entusiasmo, e eu prossegui:
-Antônio Carlos Jobim, por sua vez, tinha como ídolo Villa Lobos.
-Conheci pessoalmente o Villa Lobos.
-Sei disso; ele lhe dedicou, em 1920, o Choro nº 1, para violão, uma das maiores obras da literatura desse instrumento. Uma homenagem e tanto.
-Você, então, pensa que Machado de Assis se inspirou em mim quando escreveu o conto “O homem célebre”?
-Há musicistas que afirmam que sim, mas eu alimento as minhas dúvidas, pois o grande escritor morreu em 1908 e você ainda era novo...
-Eu não era tão novo assim, tinha mais de 40 anos, pois nasci em 1863.
-E a sua aptidão para compor veio cedo, não foi?
-Sim, com 14 anos, escrevi a polca-lundu “Você bem sabe”, que logo a Casa Arthur Napoleão editou.
-Desde então saíram dos seus dedos um chorrilho de polcas, lundus, tangos brasileiros...
-Com 17 anos, eu já me apresentava ao público no Clube Mozart.
-”Brejeiro” foi o seu primeiro sucesso na esfera nacional e internacional?
-Não sei se chegou ao exterior.
-Claro que sim, “Brejeiro” foi ouvido em Paris e em Nova York.
-Foi publicado em 1893, mas não pela Casa Arthur Napoleão.
-Ernesto Nazareth, a sua origem foi bem pobre?
-Nasci na região do porto do Rio, no Morro do Pinto, na época, Morro do Nheco. Meu pai era despachante aduaneiro e foi minha mãe, Dona Carolina, que me deu as primeiras noções de piano. Morreu cedo, eu tinha 11 anos, então, um amigo da família retomou essas lições iniciadas pela minha mãe até que passei a aprender com Charles Lucien Lambert, um pianista americano que se radicou no Rio de Janeiro, amigo de Gottschalk. 
 -Gottschalk era uma referência, como pianista; sinal que o seu talento aflorava desde menino. - manifestei-me.
-Apresentei-me no Clube Mozart, em 1880, como já disse, e, cinco anos depois, já tocava em diferentes clubes da corte.
-E se casou?
-Em 1886, com Theodora Amália Leal de Meirelles. Tivemos quatro filhos: Eulina, Diniz, Maria de Lourdes e Ernestinho.
-Você prosseguiu compondo e apresentando em público as suas criações. O seu popular tango “Turuna” surgiu na virada do século?
-Quase, em 1899.
-Bem, o empresário tcheco Frederico Figner trouxera o fonógrafo para o Rio de Janeiro e houve uma espécie de revolução cultural.
-Mas não fui eu, a Chiquinha Gonzaga, nem o saudoso Joaquim Antônio Calado que foi honrado com a primeira gravação em disco de cera de carnaúba, e sim um cantante de lundus para as massas populares, Baiano. - disse em tom crítico.
-Sim; mas em 1902, a Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro gravou “Está Chumbado”.
-Mais um tango brasileiro meu. - acrescentou sem muito entusiasmo.
-Pouco depois, 1904, cometeram um crime autoral, na minha concepção, “Brejeiro” se transformou em “O sertanejo enamorado”, porque Catulo da Paixão Cearense enfiou uma letra nas suas notas musicais. - indignei-me.
-Ninguém ousou, até hoje, em todo o mundo, colocar letras nas composições de Chopin. - frisou.
Pelo menos, todos já sabiam que a música era sua e Catulo da Paixão Cearense não pôde fazer o que tentou com João Pernambuco, passá-lo para trás com o “Luar do Sertão”, intitulando-se o único autor. - lembrei.
-O sucesso que eu obtinha era muito grande que impedia essas manobras
-Com todo esse êxito popular, as moedas pingavam na sua bolsa?
-Sim; trabalhei como pianista demonstrador da Casa Carlos Gomes, na Rua Gonçalves Dias e a minha função era divulgar músicas à venda.
 -Como assim?
-Em 1919, o cinema era mudo, não havia rádios e os discos eram poucos; o jeito para as casas de músicas divulgarem mais os seus produtos era recorrer aos pianistas demonstradores. - esclareceu.
-Trabalhei também em bailes, reuniões, cerimônias sociais e não tão sociais, em salas de cinema...
-Dessas salas de cinema, destacou-se a do Cinema Odeon que, naquele tempo, era anterior ao prédio da Cinelândia.
-Lá, atuei de 1909 a 1913 e, depois, de 1917 a 1918.
-É evidente que o seu choro, que foi chamado de tango brasileiro, “Odeon”, lançou o nome do cinema para a posteridade.
Como ele se manteve em silêncio, prossegui:
-Mas muitas personalidades ilustres frequentavam o cinema para fruir da sua arte.
-Ruy Barbosa aparecia muito no Odeon; ele não era afeito às artes populares, no entanto, era um aficionado pelo cinema. - declarou.
-Você custou a sair do Rio de Janeiro para divulgar o seu nome?
-Sim; só em 1926 embarquei para uma turnê de três meses, em São Paulo, que durou onze. Apresentei-me na Capital, em Sorocaba, em Campinas, em Tatuí...
-Na sua apresentação no Teatro Municipal de São Paulo, antes de você tocar, houve uma conferência do poeta e musicólogo Mário de Andrade.
-Lembro-me bem; ele disse, entre outras coisas, com a sua generosidade: “Se algumas vezes a prolixidade encomprida certos tangos, muitas das composições deste mestre de dança brasileira são criações magistrais, em que a força conceptiva, a boniteza da invenção melódica, a qualidade expressiva, estão dignificadas por uma formação de forma e equilíbrio surpreendentes.”
-Você tocou na Rádio MEC, quando ainda era a Rádio Sociedade?
-Sim.
-Machado de Assis – voltei ao conto “O homem célebre” - termina dizendo que o popularíssimo Pestana, morreu de bem com os homens e de mal consigo mesmo.”
-Eu não tive este luxo. Com sífilis, fui internado na Colônia Juliano Moreira, em 1933. Fugi de lá, no ano seguinte (*) e meu corpo foi encontrado junto a uma cachoeira. Eu tinha 71 anos de idade.
Dito isso, desfez-se no ar.

(*) Em tempos de fantasias de Carnaval – tem umas coisas que o Distribuidor do seu O BISCOITO MOLHADO não perdoa no redator. Ele esteve cara a cara com o falecido e nem reproduziu a hora anterior à morte do mesmo. Coisa que iríamos saborear e ninguém poderia negar. Por sorte, este Distribuidor recebeu, em sonho, a informação, com o sussurro do falecido, que já tinha lido esta edição:
 “- Bota isso no asterisco, que o teu redator não teve peito!”
E toca a relatar:
“... esperei, espremido entre o muro da capela da Colônia e da casa vizinha, no maior frio, o primeiro bonde da manhã. Só tinha o Taquara-Cascadura, o que me servia bastante, pois minha filha Eulina residia em Cascadura. Cheguei na porta da casa dela antes das seis da manhã e meu estado físico certamente a assustou bastante. Sabendo que os médicos já não tinham me dado maiores esperanças, e nem menores, encaminhou-me a uma mãe-de-santo que providenciou o despacho, no literal e no espiritual, ao entardecer daquele mesmo dia.
Subimos a encosta da Rua São Fernando, no Morro do Fubá – eu, literalmente arrastado morro acima pelas pedras molhadas pela água que escorria – tudo isso para encontrar a situação propícia para a minha cura. Infelizmente, não deu certo, talvez porque tivesse desabado uma tempestade na noite do dia 3 de fevereiro de 1934. A tormenta era tanta, que me abandonaram na clareira do despacho, com 7 velas que se apagaram quando o vento bateu. De novo com frio, só que molhado, não resisti e me lembro da cascata iluminada pelos raios como derradeira visão – foi pra lá que eu fui.
O resto vocês conhecem.”

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