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quarta-feira, 9 de maio de 2012

2144 - marca de carro

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O BISCOITO MOLHADO
Edição 3944                                          Data: 03 de maio de 2012
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BANDEIRADA

Pensava em Truffaut. Quando assisti a “Os Incompreendidos”, meu primeiro ímpeto foi bisar o filme, como nos velhos tempos do Cinema Cachambi, mas eu estava no Cine São Luís onde, terminada a sessão, as luzes acendem e a plateia é obrigada a sair, muitas vezes sem tempo de ler os créditos.
Mas surgiram outras oportunidades de eu repetir “Os Incompreendidos” e só perdi algumas.
François Truffaut não conheceu o verdadeiro pai, foi rejeitado pela mãe e os avós o criaram até os 10 anos de idade. O avô era ranzinza, de horizonte curto, mas a avó, para a sua felicidade, era bem diferente do consorte; despertou-lhe a paixão pela literatura e pela música. Viu, com 7 anos de idade, “Paraíso Perdido”, de Abel Gance e se sentiu irremediavelmente atraído pelo cinema. Três anos depois, falecia a avó e a mãe teve de aceitá-lo. Na época, ela estava casada com o arquiteto Roland Truffaut, que lhe deu o sobrenome. Apesar desse ato de generosidade, ele não tratou o menino com ternura. É verdade que o pequeno Truffaut tinha o espírito rebelde; era mau aluno e cometia atos de delinquência juvenil. O filme mostra isso, é quase autobiográfico.
Há um momento em que os três formam uma família feliz, quando vão ao cinema e retornam de carro para casa às gargalhadas. Logo, um pequeno desvio de conduta do garoto é descoberto e seus pais voltam a rejeitá-lo. O garoto, no entanto, surpreendera, bem antes, a mãe com outro homem, mas manteve o segredo.
Para redigir uma redação brilhante, ele plagiou um texto de Balzac; certamente o conhecimento do escritor lhe veio da falecida avó, de que o filme não trata. O seu professor também conhecia as páginas de Balzac e ele se deu mal. Em seguida, para escapar de uma enrascada, inventou na escola que a mãe morrera; entrou, assim, numa enrascada pior.
Roland Truffaut, o padrasto, internou-o em um reformatório juvenil de Villejuif e passou sua custódia para a polícia. “Os Incompreendidos” mostra esse episódio da vida do cineasta. O que só saberemos lendo a sua autobiografia é que, com 15 anos de idade, ele fundou um cine-clube, “Cercle cinémane” para se assistir às projeções e discuti-las em seguida.
André Bazin, escritor e afamado crítico de cinema, acreditando naquele garoto rebelde, entrou em contato com o reformatório e conseguiu a sua liberdade condicional depois de garantir que lhe daria um emprego, como deu. No filme, o que se vê é o garoto fugindo do reformatório numa desabalada carreira, então, a câmera congela. O rosto do garoto fugitivo é uma das imagens mais significativas da história do cinema.
O lançamento de “Os Incompreendidos”, em 1959, surpreendeu o mundo cinematográfico. Anos depois, Truffaut diria sobre “Os Pássaros” de Alfred Hitchcock que o cinema foi inventado para que semelhante filme fosse criado, mas podemos usar as suas palavras para “Os Incompreendidos”.
Isso me veio à cabeça, enquanto o motorista do táxi convergia toda a sua atenção para o rádio da central da cooperativa Metrô-Táxi.
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A corrida no táxi 118 parecia transcorrer sem sobressaltos até que uma pedestre saiu do mundo da lua no meio da rua que atravessava. Ao ver o carro, mostrou uma cara de pavor e fez o caminho de volta para a calçada, dessa vez, apressadamente.
-As pessoas andam distraídas, se eu não estivesse dirigindo devagar... - comentou.
-Numa manhã de domingo, quando eu dirigia, uma moça atravessou a rua como se estivesse andando pelo corredor da sua casa. - falei.
-Como assim?
-Em momento algum olhou para os lados. Eu descia a Honório quando a vi...
-Você viu, mas ela não?...- interrompeu-me o 118.
-Tive de parar o carro que, na época, era muito silencioso. Com o carro parado, testemunhei aquele exemplo máximo de distração de pedestre.
E mudei a imagem que usara anteriormente:
-Ela foi de uma calçada a outra como se desfilasse numa passarela.
-Qual era a rua? - demonstrou interesse.
-Honório.
-E ela quase foi atropelada?
-Não foi, porque eu parei o meu FIAT Uno.
-Freou?...
-Olha: até hoje essa desconhecida não sabe que existia um carro bem próximo dela, de tão aérea que estava.
-Morreria sem saber que morreu. - concluiu na sua lógica popular.
-Eu tenho um amigo, cuja filha... eu não direi que foi atropelada, e sim que recebeu um esbarrão de um carro. Ela estava de bicicleta, numa daquelas ruas agitadas da zona sul, quando pretendeu atravessar para o outro lado. - passei para outro caso.
-Sim. 
-Um motorista percebendo a intenção dela, parou o carro e ela foi. No entanto, um carro que vinha na outra pista a derrubou com a bicicleta...
-Tinham os dois de combinar com o motorista desse segundo carro também. - manifestou-se.
-O pai, quando seus amigos lhe perguntaram sobre a saúde dela, disse que a filha imaginou que o mundo ia parar para ela passar.
-Rua Modigliani. - avisou-me da chegada ao destino da nossa corrida.
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Lá estava eu de novo no táxi do 017 no caminho de Maria da Graça a Del Castilho. Eu pretendia ouvir meus pensamentos, já que a música popular sintonizada por ele, do Gilberto Gil com o Torquato Neto, não me agradava os ouvidos.
-Olha aquele carro. - disse de supetão.
-Onde?
-Já passou; um carro antigo.
Não deixei a conversa esmorecer sobre os veículos de outrora, pois imaginei que o Dieckmann gostaria de lê-la no Biscoito Molhado e ele, como distribuidor, merece um prêmio por conseguir uma leitora, Cecília Rodrigues, em Portugal, além do Cristiano Ronaldo.(*)
-Você conhece o Gustavo?
- O Gustavo?... - hesitou.
 -O camarada da carrocinha de doce da escola Manoel Bomfim?
 - Conheço.
- Ele me disse que o seu sonho de consumo é um carro Mercedes Benz 1964.
 - É um bom carro.
 - Ele, que é português, me disse que muitos táxis em Portugal são Mercedes Benz, ano 1964. (**)
 -São mesmo. - ratificou.
 -Um amigo meu tem esse carro, muitas vezes foi trabalhar com ele. Também possui um Jaguar da época em que a Inglaterra se recuperava dos estragos da Segunda Grande Guerra.
 O olhar dele para mim foi de incredulidade.
 -A placa do Jaguar é preta. - prossegui.
 -O Detran só emplaca carro antigo com essa cor se tiver 80%. no mínimo, das peças originais.
 -Mas o Jaguar dele tem; garras, dentes, urros desde o tempo em que era filhote. - garanti, enquanto o táxi entrava na Rua Modigliani.

(*) Vai ser difícil provar que a Cecília Rodrigues é brasileira. Depois que o redator cisma, não tem jeito, principalmente porque ele não lê a versão distribuída, com asteriscos. Há, entretanto, uma Cecília Mendonça em Lisboa, mas não é assinante.
(**) Realmente houve muito táxi Mercedes-Benz, em Portugal. Não só de 64, como de 58, 68, 78, enfim, todos os anos que o prezado taxista desejasse, porque a renovação dos táxis lá é contínua, como cá. Nesse tempo, poucos carros eram movidos por óleo diesel e a Mercedes vendeu muito táxi. Hoje é diferente, quase todo carro tem uma versão diesel e os taxistas escolhem qualquer marca.

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