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O BISCOITO MOLHADO
Edição 3944 Data:
03 de maio de 2012
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BANDEIRADA
Pensava em Truffaut. Quando
assisti a “Os Incompreendidos”, meu primeiro ímpeto foi bisar o filme, como nos
velhos tempos do Cinema Cachambi, mas eu estava no Cine São Luís onde,
terminada a sessão, as luzes acendem e a plateia é obrigada a sair, muitas
vezes sem tempo de ler os créditos.
Mas surgiram outras oportunidades de eu
repetir “Os Incompreendidos” e só perdi algumas.
François Truffaut não conheceu o
verdadeiro pai, foi rejeitado pela mãe e os avós o criaram até os 10 anos de
idade. O avô era ranzinza, de horizonte curto, mas a avó, para a sua
felicidade, era bem diferente do consorte; despertou-lhe a paixão pela
literatura e pela música. Viu, com 7 anos de idade, “Paraíso Perdido”, de Abel
Gance e se sentiu irremediavelmente atraído pelo cinema. Três anos depois,
falecia a avó e a mãe teve de aceitá-lo. Na época, ela estava casada com o
arquiteto Roland Truffaut, que lhe deu o sobrenome. Apesar desse ato de
generosidade, ele não tratou o menino com ternura. É verdade que o pequeno
Truffaut tinha o espírito rebelde; era mau aluno e cometia atos de delinquência
juvenil. O filme mostra isso, é quase autobiográfico.
Há um momento em que os três formam uma
família feliz, quando vão ao cinema e retornam de carro para casa às
gargalhadas. Logo, um pequeno desvio de conduta do garoto é descoberto e seus
pais voltam a rejeitá-lo. O garoto, no entanto, surpreendera, bem antes, a mãe
com outro homem, mas manteve o segredo.
Para redigir uma redação brilhante, ele
plagiou um texto de Balzac; certamente o conhecimento do escritor lhe veio da
falecida avó, de que o filme não trata. O seu professor também conhecia as
páginas de Balzac e ele se deu mal. Em seguida, para escapar de uma enrascada,
inventou na escola que a mãe morrera; entrou, assim, numa enrascada pior.
Roland Truffaut, o padrasto, internou-o
em um reformatório juvenil de Villejuif e passou sua custódia para a polícia.
“Os Incompreendidos” mostra esse episódio da vida do cineasta. O que só
saberemos lendo a sua autobiografia é que, com 15 anos de idade, ele fundou um
cine-clube, “Cercle cinémane” para se assistir às projeções e discuti-las em
seguida.
André Bazin, escritor e afamado crítico
de cinema, acreditando naquele garoto rebelde, entrou em contato com o
reformatório e conseguiu a sua liberdade condicional depois de garantir que lhe
daria um emprego, como deu. No filme, o que se vê é o garoto fugindo do
reformatório numa desabalada carreira, então, a câmera congela. O rosto do
garoto fugitivo é uma das imagens mais significativas da história do cinema.
O lançamento de “Os Incompreendidos”, em
1959, surpreendeu o mundo cinematográfico. Anos depois, Truffaut diria sobre
“Os Pássaros” de Alfred Hitchcock que o cinema foi inventado para que
semelhante filme fosse criado, mas podemos usar as suas palavras para “Os
Incompreendidos”.
Isso me veio à cabeça, enquanto o
motorista do táxi convergia toda a sua atenção para o rádio da central da
cooperativa Metrô-Táxi.
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A corrida no táxi 118 parecia
transcorrer sem sobressaltos até que uma pedestre saiu do mundo da lua no meio
da rua que atravessava. Ao ver o carro, mostrou uma cara de pavor e fez o
caminho de volta para a calçada, dessa vez, apressadamente.
-As pessoas andam distraídas, se eu não
estivesse dirigindo devagar... - comentou.
-Numa manhã de domingo, quando eu
dirigia, uma moça atravessou a rua como se estivesse andando pelo corredor da
sua casa. - falei.
-Como assim?
-Em momento algum olhou para os lados.
Eu descia a Honório quando a vi...
-Você viu, mas ela não?...-
interrompeu-me o 118.
-Tive de parar o carro que, na época,
era muito silencioso. Com o carro parado, testemunhei aquele exemplo máximo de
distração de pedestre.
E mudei a imagem que usara
anteriormente:
-Ela foi de uma calçada a outra como se
desfilasse numa passarela.
-Qual era a rua? - demonstrou interesse.
-Honório.
-E ela quase foi atropelada?
-Não foi, porque eu parei o meu FIAT
Uno.
-Freou?...
-Olha: até hoje essa desconhecida não
sabe que existia um carro bem próximo dela, de tão aérea que estava.
-Morreria sem saber que morreu. -
concluiu na sua lógica popular.
-Eu tenho um amigo, cuja filha... eu não
direi que foi atropelada, e sim que recebeu um esbarrão de um carro. Ela estava
de bicicleta, numa daquelas ruas agitadas da zona sul, quando pretendeu
atravessar para o outro lado. - passei para outro caso.
-Sim.
-Um motorista percebendo a intenção
dela, parou o carro e ela foi. No entanto, um carro que vinha na outra pista a
derrubou com a bicicleta...
-Tinham os dois de combinar com o
motorista desse segundo carro também. - manifestou-se.
-O pai, quando seus amigos lhe
perguntaram sobre a saúde dela, disse que a filha imaginou que o mundo ia parar
para ela passar.
-Rua Modigliani. - avisou-me da chegada
ao destino da nossa corrida.
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Lá estava eu de novo no táxi do 017 no
caminho de Maria da Graça a Del Castilho. Eu pretendia ouvir meus pensamentos,
já que a música popular sintonizada por ele, do Gilberto Gil com o Torquato
Neto, não me agradava os ouvidos.
-Olha aquele carro. - disse de supetão.
-Onde?
-Já passou; um carro antigo.
Não deixei a conversa esmorecer sobre os
veículos de outrora, pois imaginei que o Dieckmann gostaria de lê-la no
Biscoito Molhado e ele, como distribuidor, merece um prêmio por conseguir uma
leitora, Cecília Rodrigues, em Portugal, além do Cristiano Ronaldo.(*)
-Você conhece o Gustavo?
- O Gustavo?... - hesitou.
-O camarada da carrocinha de doce da escola
Manoel Bomfim?
-
Conheço.
- Ele me disse que o seu sonho de
consumo é um carro Mercedes Benz 1964.
-
É um bom carro.
-
Ele, que é português, me disse que muitos táxis em Portugal são Mercedes Benz,
ano 1964. (**)
-São mesmo. - ratificou.
-Um amigo meu tem esse carro, muitas vezes foi
trabalhar com ele. Também possui um Jaguar da época em que a Inglaterra se
recuperava dos estragos da Segunda Grande Guerra.
O
olhar dele para mim foi de incredulidade.
-A placa do Jaguar é preta. - prossegui.
-O Detran só emplaca carro antigo com essa cor
se tiver 80%. no mínimo, das peças originais.
-Mas o Jaguar dele tem; garras, dentes, urros
desde o tempo em que era filhote. - garanti, enquanto o táxi entrava na Rua
Modigliani.
(*) Vai ser
difícil provar que a Cecília Rodrigues é brasileira. Depois que o redator
cisma, não tem jeito, principalmente porque ele não lê a versão distribuída,
com asteriscos. Há, entretanto, uma Cecília Mendonça em Lisboa, mas não é
assinante.
(**)
Realmente houve muito táxi Mercedes-Benz, em Portugal. Não só de
64, como de 58, 68, 78, enfim, todos os anos que o prezado taxista desejasse,
porque a renovação dos táxis lá é contínua, como cá. Nesse tempo, poucos carros
eram movidos por óleo diesel e a Mercedes vendeu muito táxi. Hoje é diferente,
quase todo carro tem uma versão diesel e os taxistas escolhem qualquer marca.
ora pois, sou brasileira, ô pá!
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