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quarta-feira, 23 de maio de 2012

2152 - paraíba 2

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O BISCOITO MOLHADO
Edição 3852                                          Data: 16 de maio de 2012
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80ª VISITA DOS ESCRITORES À MINHA CASA
PARTE II
-George Sand, você mereceu elogios de grandes artistas do século XIX.
-Relembre esses elogios, pois há mais de 100 anos que ninguém me exalta.
Com um livro aberto nas mãos, eu disse:
-O grande poeta alemão Heine escreveu:
“... o seu rosto deve ser considerado belo e interessante. O interessante é sempre um desvio gracioso ou engenhoso do tipo belo, e os traços de George Sand contêm certa impressão de regularidade grega. As suas formas, (…) não são duras, mas suavizadas pelo sentimento que é espalhado sobre elas como um véu de sofrimento. A testa não é alta. (…) e o delicioso cabelo castanho cacheado cai partido até os ombros. Ela não tem um nariz aquilino nem um nariz curto, pequeno e gracioso. É somente um nariz reto comum. Um sorriso bem-humorado geralmente brinca na sua boca...  Seus olhos são um tanto apagados. Ela tem olhos tranquilos e delicados que não nos lembram nem de Sodoma nem de Gomorra. O lábio de baixo levemente caído revela traiçoeiramente a sensualidade fatigada.
Eu, que já saltara a parte em que Heine afirmou que o seu sorriso não era atraente, notei que ela estava um tanto melancólica e disse:
-Passemos para Musset, grande poeta do romantismo francês.
E li:
-É o tipo de mulher de que eu gosto – morena, pálida, de compleição clara com reflexos bronzeados, e com olhos arrebatadores e grandes como uma indiana. Jamais fui capaz de contemplar tal rosto sem uma emoção interior. Sua fisionomia é relativamente tórpida, mas, quando se anima, assume uma expressão notoriamente independente e orgulhosa.
Suspendi a leitura e comentei:
-Musset falou com conhecimento de causa.
-Meu relacionamento com Musset se iniciou em 1833, mas durou apenas dois anos devido ao excesso de ciúmes que ele nutria por mim.
Voltei à leitura do livro:
-Chopin escreveu no seu álbum, que era uma espécie de diário: “Já a vi três vezes. Ela olhou profundamente nos meus olhos enquanto eu tocava. Era uma música relativamente triste, as lendas do Danúbio; meu coração dançou com ela. E seus olhos nos meus olhos, sombrios e singulares, o que diziam? Estava recostada no piano e seu olhar envolvente me inundou. (…) Flores à nossa volta. Meu coração foi capturado! Já a vi duas vezes depois disto... Aurora, que nome encantador.”
Chopin jamais diria “George, que nome encantador”. - pensei, mas falei outra coisa.
-O seu relacionamento mais duradouro foi com Chopin, de 1837 a 1847.
-Quanto me custaram esses 10 anos! - expirou ruidosamente.
-Tempo em que você ouviu o surgimento das mais belas músicas compostas para o piano.
-Mas a vida não é só músicas que se compõem e livros que se escrevem. - rebateu.
-Foi penoso aquele verão na Ilha de Maiorca. - reportei-me à ida de George Sand e Chopin para a Espanha no primeiro ano de relacionamento.
-Meu filho, Maurice, estava com 15 anos de idade e sofria de reumatismo, necessitava de um lugar quente para a sua saúde. Eu precisava, também, de tranquilidade para escreveu um novo romance, Spiridion.  Chopin se sentiria bem com o calor da Espanha – imaginei.
-Três meses de estada lá?...
-Uma eternidade!...
E eu tentei dizer o porquê do seu desânimo.
-Na Espanha, chegaram em Palma...
George Sand me interrompeu intempestivamente:
-Era impossível encontrar um apartamento minimamente habitável em toda cidade. Um apartamento em Palma de Maiorca é composto por quatro paredes absolutamente peladas, sem portas ou janelas. Na maioria das casas burguesas, não se usam janelas de vidro e, quando se deseja garantir tal iguaria, ela tem de ser construída. Cada inquilino leva, portanto, consigo, quando se muda, as janelas, as trancas e até mesmo os alisares das portas. O seu sucessor tem de começar por substituí-los, a não ser que goste de viver ao vento.”
  -Apesar dos problemas desse verão, Chopin ainda conseguiu compor verdadeiras obras-primas. - contemporizei.
-Ele não conseguiu nem vender o piano, na nossa partida da Ilha de Maiorca, porque temiam o contágio da tuberculose. Na ida para Barcelona, no vapor El Mallorquín, onde estávamos eu, Chopin e meus filhos, o capitão limitou nossa área com medo de que a doença de Chopin passasse para os outros.
E arrematou:
-Fui mãe e enfermeira dele.
-Você, seis anos mais velha do que Chopin, nutriu um amor maternal...
-Como mulher, eu não me realizava mais com ele.
-O livro que você escreveu, Lucrezia, foi o estopim do rompimento com Chopin, muitos dizem. Vejamos o enredo. Lucrezia, que teve vários casos amorosos, encontra o príncipe Karol de Roswald, de vinte anos (ela estava com 30), um aristocrata da Europa, que é adorável, gentil, sensível, refinado, um rosto bonito e angelical, como o de uma grande mulher melancólica. Eles se apaixonam, e Lucrezia cuida dele como dos filhos. Logo, o verdadeiro caráter egoísta de Karol se revela: é ciumento, intolerante. Um dia, Karol ficou com ciúmes de um padre que viera pedir um donativo. Outro dia, teve ciúmes de um pedinte que considerou ser o seu amante disfarçado. Teve ciúmes, também, de um criado. E de muitos outros. Lucrezia, infeliz, perde a beleza, fica amarela e enrugada, sofre por ter sido condenada a uma velhice prematura causada pelo péssimo tratamento do amante que não a respeita mais. Ela não ama mais Karol e, nessa infelicidade, morre de repente.
George Sand apenas me olhava.
-Em Paris, fofocou-se que o seu livro era uma versão velada do seu relacionamento com Chopin. Eu, particularmente, penso que esse Karol  se assemelha mesmo é com Musset.
-Meu rompimento com Chopin se deu por causa da briga a tapas que houve na família, ele tomou o partido da minha filha Solange, cujo marido me agrediu.
-André Maurois, que escreveu a sua biografia, George Sand, comentou que uma briga entre dois seres que se amaram muito é algo triste e bobo. Afirmou que, na maioria das vezes, não há nada realmente grave, e que, devido a ressentimento ou orgulho, aquele que foi caluniado se recusa a explicar. Prolonga-se um silêncio que faz um morrer para o outro. É assim que as afeições são rompidas. E arrematou o grande escritor do século XX: “Quanto maior foi o sentimento, mais se cria um tipo de ódio na decepção.”
-Dois anos depois, em 1849, Chopin morreu.
-Ele estava com 39 anos de idade.
-E você, vinte e sete anos depois; escreveu muitos livros ainda.
-Livros que, hoje, ninguém lê, enquanto a obra de Chopin se eternizou.
-Sua obra ainda atrai os leitores. - tentei ser gentil.
-Não me iludo. Ninguém quer saber, na atualidade, de heroínas desesperadas e heróis galantes e pálidos. Não agradam mais os meus diálogos retóricos e os ideais mais romanescos do que ideológicos que coloquei no papel.
Depois, quebrou o silêncio pesado:
-Tenho de ir...
E volatizou-se. 



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