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O BISCOITO MOLHADO
Edição 3852 Data:
16 de maio de 2012
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80ª VISITA DOS ESCRITORES À MINHA CASA
PARTE II
-George Sand, você mereceu elogios de
grandes artistas do século XIX.
-Relembre esses elogios, pois há mais de
100 anos que ninguém me exalta.
Com um livro aberto nas mãos, eu disse:
-O grande poeta alemão Heine escreveu:
“... o seu rosto deve ser considerado
belo e interessante. O interessante é sempre um desvio gracioso ou engenhoso do
tipo belo, e os traços de George Sand contêm certa impressão de regularidade
grega. As suas formas, (…) não são duras, mas suavizadas pelo sentimento que é
espalhado sobre elas como um véu de sofrimento. A testa não é alta. (…) e o
delicioso cabelo castanho cacheado cai partido até os ombros. Ela não tem um
nariz aquilino nem um nariz curto, pequeno e gracioso. É somente um nariz reto
comum. Um sorriso bem-humorado geralmente brinca na sua boca... Seus olhos são um tanto apagados. Ela tem
olhos tranquilos e delicados que não nos lembram nem de Sodoma nem de Gomorra.
O lábio de baixo levemente caído revela traiçoeiramente a sensualidade
fatigada.
Eu, que já saltara a parte em que Heine
afirmou que o seu sorriso não era atraente, notei que ela estava um tanto
melancólica e disse:
-Passemos para Musset, grande poeta do
romantismo francês.
E li:
-É o tipo de mulher de que eu gosto –
morena, pálida, de compleição clara com reflexos bronzeados, e com olhos
arrebatadores e grandes como uma indiana. Jamais fui capaz de contemplar tal
rosto sem uma emoção interior. Sua fisionomia é relativamente tórpida,
mas, quando se anima, assume uma expressão notoriamente independente e
orgulhosa.
Suspendi a leitura e comentei:
-Musset falou com conhecimento de causa.
-Meu relacionamento com Musset se
iniciou em 1833, mas durou apenas dois anos devido ao excesso de ciúmes que ele
nutria por mim.
Voltei à leitura do livro:
-Chopin escreveu no seu álbum, que era
uma espécie de diário: “Já a vi três vezes. Ela olhou profundamente nos meus
olhos enquanto eu tocava. Era uma música relativamente triste, as lendas do Danúbio;
meu coração dançou com ela. E seus olhos nos meus olhos, sombrios e singulares,
o que diziam? Estava recostada no piano e seu olhar envolvente me inundou. (…)
Flores à nossa volta. Meu coração foi capturado! Já a vi duas vezes depois
disto... Aurora, que nome encantador.”
Chopin jamais diria “George, que nome
encantador”. - pensei, mas falei outra coisa.
-O seu relacionamento mais duradouro foi
com Chopin, de 1837 a 1847.
-Quanto me custaram esses 10 anos! -
expirou ruidosamente.
-Tempo em que você ouviu o surgimento
das mais belas músicas compostas para o piano.
-Mas a vida não é só músicas que se
compõem e livros que se escrevem. - rebateu.
-Foi penoso aquele verão na Ilha de
Maiorca. - reportei-me à ida de George Sand e Chopin para a Espanha no primeiro
ano de relacionamento.
-Meu filho, Maurice, estava com 15 anos
de idade e sofria de reumatismo, necessitava de um lugar quente para a sua
saúde. Eu precisava, também, de tranquilidade para escreveu um novo romance, Spiridion. Chopin se sentiria bem com o calor da Espanha
– imaginei.
-Três meses de estada lá?...
-Uma eternidade!...
E eu tentei dizer o porquê do seu
desânimo.
-Na Espanha, chegaram em Palma...
George Sand me interrompeu
intempestivamente:
-Era impossível encontrar um apartamento
minimamente habitável em toda cidade. Um apartamento em Palma de Maiorca é
composto por quatro paredes absolutamente peladas, sem portas ou janelas. Na
maioria das casas burguesas, não se usam janelas de vidro e, quando se deseja
garantir tal iguaria, ela tem de ser construída. Cada inquilino leva, portanto,
consigo, quando se muda, as janelas, as trancas e até mesmo os alisares das
portas. O seu sucessor tem de começar por substituí-los, a não ser que goste de
viver ao vento.”
-Apesar dos problemas desse verão, Chopin ainda conseguiu compor verdadeiras
obras-primas. - contemporizei.
-Ele não conseguiu nem vender o piano,
na nossa partida da Ilha de Maiorca, porque temiam o contágio da tuberculose.
Na ida para Barcelona, no vapor El Mallorquín, onde estávamos eu, Chopin e meus
filhos, o capitão limitou nossa área com medo de que a doença de Chopin
passasse para os outros.
E arrematou:
-Fui mãe e enfermeira dele.
-Você, seis anos mais velha do que
Chopin, nutriu um amor maternal...
-Como mulher, eu não me realizava mais
com ele.
-O livro que você escreveu, Lucrezia,
foi o estopim do rompimento com Chopin, muitos dizem. Vejamos o enredo.
Lucrezia, que teve vários casos amorosos, encontra o príncipe Karol de Roswald,
de vinte anos (ela estava com 30), um aristocrata da Europa, que é adorável,
gentil, sensível, refinado, um rosto bonito e angelical, como o de uma grande
mulher melancólica. Eles se apaixonam, e Lucrezia cuida dele como dos filhos.
Logo, o verdadeiro caráter egoísta de Karol se revela: é ciumento, intolerante.
Um dia, Karol ficou com ciúmes de um padre que viera pedir um donativo. Outro
dia, teve ciúmes de um pedinte que considerou ser o seu amante disfarçado. Teve
ciúmes, também, de um criado. E de muitos outros. Lucrezia, infeliz, perde a
beleza, fica amarela e enrugada, sofre por ter sido condenada a uma velhice
prematura causada pelo péssimo tratamento do amante que não a respeita mais.
Ela não ama mais Karol e, nessa infelicidade, morre de repente.
George Sand apenas me olhava.
-Em Paris, fofocou-se que o seu livro
era uma versão velada do seu relacionamento com Chopin. Eu, particularmente,
penso que esse Karol se assemelha mesmo
é com Musset.
-Meu rompimento com Chopin se deu por
causa da briga a tapas que houve na família, ele tomou o partido da minha filha
Solange, cujo marido me agrediu.
-André Maurois, que escreveu a sua
biografia, George Sand, comentou que uma briga entre dois seres que se amaram
muito é algo triste e bobo. Afirmou que, na maioria das vezes, não há nada
realmente grave, e que, devido a ressentimento ou orgulho, aquele que foi
caluniado se recusa a explicar. Prolonga-se um silêncio que faz um morrer para
o outro. É assim que as afeições são rompidas. E arrematou o grande escritor do
século XX: “Quanto maior foi o sentimento, mais se cria um tipo de ódio na
decepção.”
-Dois anos depois, em 1849, Chopin
morreu.
-Ele estava com 39 anos de idade.
-E você, vinte e sete anos depois;
escreveu muitos livros ainda.
-Livros que, hoje, ninguém lê, enquanto
a obra de Chopin se eternizou.
-Sua obra ainda atrai os leitores. -
tentei ser gentil.
-Não me iludo. Ninguém quer saber, na
atualidade, de heroínas desesperadas e heróis galantes e pálidos. Não agradam
mais os meus diálogos retóricos e os ideais mais romanescos do que ideológicos
que coloquei no papel.
Depois, quebrou o silêncio pesado:
-Tenho de ir...
E volatizou-se.
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