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quinta-feira, 24 de maio de 2012

2154 - o biscoito culpado


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 3854                                    Data: 19 de maio de 2012
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LONDRES ASSADA POR UM PADEIRO
 Depois da fuga de Varennes, eu estava tão entorpecido que a minha voz soou estranha.
-Quanta fumaça sai desse ópio...
-Carlos, isto é o fog londrino.
-Estamos em Londres, Elio? - espantei-me para, sem respirar, concluir.
-Espero que esta não seja a época da Maria Sanguinária.
-Você se refere à Rainha Mary Tudor, conhecida como Bloody Mary pelo seu fanatismo religioso?
Essa mesmo; se ainda reina, Elio, esqueço o meu agnosticismo e volto a ser católico.
-Não, Carlos; se os filmes de Hollywood a que assisti não erraram no figurino, as vestimentas das pessoas que vemos são de reinados posteriores.
Depois de abordarmos um e outro inglês, soubemos que estávamos no fim de agosto de 1666.
-Carlos, aquele que rege a orquestra dos gênios, segundo Voltaire, vive. - iluminaram-se as feições do Causídico Verborrágico.
-Isaac Newton...
-Ele mesmo, Carlos. Li sua biografia, sei que nasceu em 1642. Vamos vê-lo.
O seu entusiasmo fervia.
-Ele está com 24 anos, ainda não elaborou as suas ideias luminosas. Talvez, encontre-se fora de Londres... - tentei esfriar o seu ânimo.
-Com 24 anos, Carlos, Isaac Newton já estudava a dispersão da luz branca através de um prisma e trabalhava na construção do primeiro telescópio de reflexão. Vamos vê-lo.
Não convenci o meu amigo e, assim, partimos atrás do grande homem.
-Pelas informações que obtivemos, estamos na pista exata. - disse ele.
Dessa vez, ele acertou, encontramos o gênio cochilando debaixo de uma árvore.
-Carlos, não se trata apenas do Isaac Newton, a árvore que dá sombra é uma macieira. - vibrou como um menino.
-Elio, na Inglaterra as árvores não dão sombra porque o sol com a sua quentura nunca aparece.
-Que seja! Mas importa que ali estão Isaac Newton e a macieira.
-Sim, mas a descoberta da Lei da Gravidade depois que uma maçã serviu de despertador de Newton é lenda.
-Sei, Carlos, que Isaac Newton introduziu a noção de gravitação universal ao identificar a gravidade terrestre com as atrações entre os corpos bem depois deste ano de 1666, mas nós podemos acelerar o processo.
-Como acelerar o processo?
-Você sobe na macieira e joga uma maçã na cabeça do gênio, que dorme.
-Elio, eu não subo numa árvore desde os 16 anos de idade, quando serrei o galho de uma mangueira e caí.
-Isso, quando?... Em 1964?... Estamos 29 de agosto de 1666.
Convencido pela argumentação cansativa do Causídico Verborrágico, subi na macieira e deixei um fruta cair no cocoruto de Isaac Newton. Ele acordou soltando um motherfucker e rumou para dentro de um prédio com aparência de biblioteca.
Com o passar das horas, a vibração de fã por ídolo do Elio se esfriou, e seguimos nosso caminho.
-Elio, já passamos pela Grécia, pela França, pelos Estados Unidos, e, durante esse tempo todo, não fiz um só biscoito, o que me traz uma sensação de inutilidade.
-Faça biscoitos, então, visando dinheiro, pois precisamos do vil metal para adquirir ópio e sair desse lugar.
Com o incentivo do Elio, consegui emprego com Thomas Farriner, o padeiro do rei, em Pudding Lane, como mitron, ou seja, ajudante de padeiro.
-Eu disse que só aceitava ser mitron do Shakespeare, mas ele bradou que o bardo morreu há algum tempo.
-Você não tem de ter essas vaidades, afinal, ele trabalha para o rei Carlos II. - advertiu-me.
Depois de uma pausa, Elio me perguntou:
-E quem vai distribuir os seus biscoitos?
-Se o Dieckmann estivesse aqui, conosco, seria ele, como não está, eu mesmo distribuo.
No dia primeiro de setembro, comecei a trabalhar na padaria do rei Carlos II, em Pudding Lane, perto da ponte de Londres.  Nesse primeiro e único dia de trabalho, não me mostrei muito eufórico.
-Não adianta imitar o meu estilo, pois eu lido com a farinha de trigo como Miguelângelo lidava com o mármore. As minhas obras artísticas são inigualáveis. - gabou-se Thomas Farriner.
-Porque ele é padeiro do rei, julga-se a quintessência dos fabricantes de pães. - pensei sem me manifestar.
Depois do expediente, encontrei-me com o Elio num pub que servia uma cerveja quente.
-Carlos, tentei defender, no tribunal, algumas das muitas mulheres espancadas pelos seus maridos, por aqui, mas não consegui um só caso; não existe lei que impeça essa prática brutal na Inglaterra.
-Elio, os ingleses precisam de uma Mary da Penha Act.
Horas depois, nós dois nos recolhemos numa espelunca de uma rua estreita, como tantas outras ruas, que não cobrava diárias adiantadas.
-Isto aqui parece tão miserável quanto umas favelas que vi no Rio de Janeiro. - disse o Elio, enquanto se ajeitava no chão forrado com um grosso pano. (*)
Na manhã seguinte, quanto mais eu me aproximava da padaria do rei, mais sentia subir a temperatura. Olhei para cima e o sol continuava escondido pelas densas nuvens. Subitamente, deparei-me com uma multidão que corria em sentido contrário ao meu.
-O que foi? - perguntei a um popular.
-A padaria de Thomas Farriner está em chamas.
-Deixaram queimar os meus biscoitos! - levei as mãos à cabeça.
-O fogo se espalha com o vento do leste. - gritou outro popular com a voz tomada pelo desespero.
Com tudo em ebulição, saí em busca do Elio e, com alguma dificuldade, eu o encontrei suando em bicas.
-Carlos, o fogo é tanto que nem adianta jogar tinas e baldes de água.
-As chamas são vistas daqui. - constatei.
-São casas de madeira, coladas uma na outra, é toda uma estrutura medieval... daqui a pouco, as chamas serão vistas a quilômetros daqui.- previu o Elio.
-O jeito é nos juntarmos à multidão e correr para longe, bem longe. - propus.
Enquanto corríamos entre milhares de pessoas, comentei:
-Esta, na realidade, é a primeira maratona de Londres.
Três dias depois, o incêndio parou, não porque encontrou resistência, mas porque não havia quase nada para queimar. Feita a lúgubre contabilidade, falaram em 13.200 casas destruídas, 44 prédios públicos, 87 igrejas mais a Catedral de Saint Paul. Os óbitos não passaram de 19, mas os desabrigados pelo fogo foram mais de 100 mil.
-Por que três dias de inferno? - gritou um inglês.
A técnica de derrubar construções para impedir o espalhamento do fogo foi retardada pelo Lord Major de Londres, Sir Thomas Bloodworth, que subestimou o potencial das chamas – era a explicação encontrada para a duração prolongada do incêndio.
-Carlos, eu sei sobre a reconstrução de Lisboa depois do terrível terremoto de 1755, o Marquês de Pombal recorreu ao ouro do Brasil, mas nada sei sobre a reconstrução de Londres depois deste incêndio.
-O rei Carlos II também tinha o seu ouro roubado, Elio. 
Soube-se, então, que o incêndio de Londres começou na padaria de Thomas Farriner, onde o forno não foi apagado inteiramente, ensejando que fagulhas chegassem à madeira e se agigantassem, saindo do controle humano.
-Carlos, vamos fugir porque podem colocar a culpa  nos seus biscoitos.
E fugimos.
(*) A língua inglesa sobrevive porque influencia a todos. Vejam este prosaico exemplo; o redator do seu O BISCOITO MOLHADO empregou o adjetivo à inglesa, grosso pano, em vez de pano grosso. Será que foi porque se sentiu realmente em Pudding Lane? Em Asterix entre os Bretões podemos ver a influência do linguajar sob a forma de humor quando o Obelix se indignou ao ouvir que o inglês ia misturar chá com quente água.

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