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O BISCOITO MOLHADO
Edição 3943
Data: 02 de maio de 2012
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79ª VISITA DOS ESCRITORES À MINHA CASA
-Existe uma unanimidade no mundo
acadêmico que, com “Buddenbrooks”, de 1901, você se tornou um dos escritores
mais notáveis do século XX. Começou bem, tinha apenas 26 anos de idade e o
século cheirava a fraldas.
-Compensou ser um pássaro que
emporcalhou o próprio ninho.
-Pouco depois, você conheceu Katia
Pringsheim?
-Ela pertencia a uma proeminente e
antiga família de intelectuais judia. Sua avó, chamada Hedwig Dohm, foi
ativista dos direitos da mulher.
-Quando vocês se casaram?
-Casei-me com Kátia em 1905.
-E tiveram seis filhos.
Thomas Mann passou a citá-los:
-Erika, Klaus, Golo, Monika, Elizabeth e
Michael.
-Golo?... - estranhei.
-Angelus Gottfried Thomas.
-Os alemães também fazem as suas
abreviaturas. - disse.
-Depois, você escreveu “Morte em
Veneza”?
-Fui antes a Veneza, como o protagonista
Aschbach... E a novela – não vamos chamá-la de romance – ficou pronta em 1911 e foi publicada no ano
seguinte.
-”Morte em Veneza” não é uma obra tão
biográfica quanto “Buddenbrooks”, mas é mais confessional.
-Assim afirmam os enxeridos do meu
diário íntimo.
-Mal saiu publicado “Morte em Veneza”,
você deu início a “A Montanha Mágica”.
-Nesse ano, a minha mulher Kátia foi
internada num sanatório de Davos, na Suíça, para se tratar de uma tuberculose.
-O sanatório é o cenário desse romance.
-Baseei-me, para escrever, em muitos
dados que Kátia me trazia do lugar onde se internara.
-Beethoven, ao compor a ópera “Fidélio”,
comparou as dores da criação com as dores do parto, pois foram as piores que
sentira na sua carreira de compositor. Para você não foi “A Montanha Mágica”,
iniciada em 1912 e encerrada em 1924,
a que doeu mais para vir à luz?
-Demorou, porque eu mesmo precisava
amadurecer as minhas ideias para elaborar uma obra representativa do mundo em
que vivia. Em 1915, eu entrei em conflito com meu irmão, Heinrich Mann. Eu
havia redigido um ensaio sobre Friedrich, o Grande, da Prússia, quando
justifiquei a entrada da Alemanha na Primeira Guerra Mundial. Meu irmão, que
estava do lado da “Civilization”, ou seja, do ideário francês, discordou de mim
e cortamos relações. Heinrich Mann já deixara patente, no seu romance “Der
Untertan” (O Súdito), que desprezava o espírito provinciano, totalitário dos
adeptos do Kaiser Guilherme II. Para demonstrar a firmeza das minhas opiniões,
penhorei, em 1917, a
casa que possuía em Bad Tölz ,
a favor do esforço de guerra.
-Que coisa! - limitei-me a ficar
estupefato.
-Era uma bela casa, na Rua HeiB, a 50 quilômetros do
sul de Munique, na proximidade dos Alpes.
-Eu a vi em fotografia.
-A nossa mãe Júlia nos escreveu na
tentativa desesperada de reconciliar os dois filhos.
-Não foi exitosa?
-Não; escrevi, em 1918, “Reflexões de um
homem não-político” em que defendi a cultura alemã contra a ideologia dogmática
do ocidente.
-Como eu lhe disse, na sua chegada, “A
Montanha Mágica” foi a obra literária que me obrigou a gastar mais tempo para
ler.
-”Der Zauberberg” (”A Montanha Mágica”)
era uma viagem à decadência, uma busca da ideia do homem, o conceito de uma
humanidade futura que vivenciou a doença e a morte.
-O romance, iniciado em 1912, foi
retomado em 1919, após o término da guerra.
-Sim, e como pinguei o ponto final em
1924, colhi também experiências da Alemanha com a República de Weimar. O
romance não foi apenas o retrato de uma Europa em ebulição no espocar da
Primeira Grande Guerra Mundial.
-Não me esqueço dos dois polemistas que,
de tanto discutirem, recorreram ao duelo e do gramofone com vários discos em 78
RPM de música clássica que desanuviava o ambiente doentio do sanatório.
-Kátia me contou que os doentes
melhoraram muito depois que puseram um gramofone com discos no sanatório onde
estava.
-Bem, “A Montanha Mágica” se torna um
dos romances mais influentes da literatura mundial e o seu nome se solidifica
de vez na arte literária. Assim, em 1929, você recebe o Prêmio Nobel de
Literatura.
-A justificativa do júri, para o prêmio,
foi o fato de eu ter escrito “Buddenbrooks”. Por que esperaram tanto tempo, já
que o romance foi editado em 1901?... Na verdade, “Der Zauberberg” (“A Montanha
Mágica”) deu o empurrão no júri na minha direção, mas ninguém revelou isso.
-Você estava mudando... Os estudiosos
afirmam que você adquiriu um espírito mais crítico sobre a sociedade e cultura
germânica.
-Eu estava aprendendo, conforme a vida
segue adiante. Eu amadurecia com a passagem do tempo, como já devo ter dito. Eu
aprendia desde que romanceei, em “Buddenbrooks”, uma família em decadência, em
que os descendentes não sabiam levar adiante os negócios que herdaram.
-O comércio em Lübeck... falei
reticentemente.
-Em 1930, com 55 anos de idade, apoiado
na minha fama de escritor e no Prêmio Nobel, apresentei um discurso no
Beethoven Saal, em
Berlim. Apelei à razão dos alemães, avisei a eles do perigo
que representaria a ascensão do nazismo ao poder. Deutsche Ansprache, ein
Appel an die Vernunft foi o meu discurso na língua pátria.
-O povo alemão perdeu a lucidez e, em
1933, Hitler chegou ao poder com seus asseclas.
-Fui para Küsnacht, perto de Zurique.
Durante o regime nazista, o jornal Völkischer Beobachter (Observador
Popular) publicou listas de expatriados. Numa delas, estávamos eu, Kátia e meus
filhos mais novos. Quanto a Erika e a Klaus, os mais velhos, já haviam retirado
a cidadania alemã.
-Hitler chegou ao poder e você partiu
com mulher e filhos para a Suíça. Ficaram no país em que a Kátia se tratara,
enquanto a Alemanha adoecia.
-Sim.
-Quando estourou a Segunda Grande
Guerra, você se exilou nos Estados Unidos?
-Parti um ano antes, em 1938.
-Nos Estados Unidos, escreveu?...
-Escrevi, sem nada publicar. De 1940 a 1945, gravei para a
BBC de Londres uma fala, “Deutsche Hörer!” (Ouvintes alemães), que era
retransmitida na Alemanha, chamando os meus compatriotas à razão.
-É evidente que os alemães que
sintonizavam as rádios inglesas arriscavam a vida. - comentei.
-Quando desembarquei nos Estados Unidos,
fui trabalhar como convidado na Universidade de Princeton, mas o ambiente
acadêmico me entediava. Em 1944, obtive a cidadania americana.
-Consta que o presidente Roosevelt
cogitou o seu nome para assumir o governo alemão após a derrota dos nazistas.
-Minha vocação era a literatura.
-Voltou à Alemanha?
-Em 1949, discursei em Frankfurt-am-Main
e em Weimar, na comemoração dos 200 anos de Goethe. Em 1950, publiquei “Dr.
Faustus”.
-E retornou a Europa definitivamente em
1952?
-Sim, porque o macarthismo passou a
perseguir os intelectuais. Os Estados Unidos tiveram um espasmo de insanidade.
-De volta para a Alemanha?...
-Para a Suíça, em Kilchberg, não muito
longe de Zurique. Morei lá até 1955, quando morri com 80 anos de idade.
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