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terça-feira, 3 de novembro de 2015

2970 - o bêbado e o andarilho.


 

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5220                          Data:  30 de outubro  de 2015

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NA ACADEMIA DA TERCEIRA IDADE

 

Exercitando-me na academia da terceira idade, antes do nascer do sol, (atualizando a frase do Nélson Rodrigues) eu me sinto mais só que Robinson Crusoé sem celular. Antes, havia o Jessé; eu o via desde a época em que eu caminhava na rua, no estacionamento do Shopping Nova América, por aí, enfim. Numa dessas caminhadas pela rua, abordou-me pela primeira vez perguntando se poderia me acompanhar. Bem, correndo ou caminhando, nunca sofri de solidão, pelo contrário, eu a prefiro; respondi-lhe que o meu itinerário era completamente doido, ele percebeu a minha má vontade e reagiu com brusquidão: “Faça o que você achar melhor”.    

Com a implantação da academia da terceira idade na Praça Manet, em Del Castilho, dois meses antes das eleições de 2014, acrescentei às minhas caminhadas exercícios físicos propiciados pelos aparelhos que lá estão. Foi quando me baixou a necessidade de ter alguém próximo para conversar e, assim, pôr para correr o tédio que eu sentia naqueles simuladores de esqui e de caminhada. Então ele, que mora em Maria da Graça, soube da novidade e apareceu lá. Como é mais gregário do que eu, reaproximou-se de mim e, depois de tantos anos nos avistando, na hora da passagem da noite para o dia, soube que se chamava Jessé e ele que eu era o Carlos. Tornamo-nos companheiros de ginástica, parceiros como os jovens dizem.

Jessé não era idoso, tinha 54 anos, e, praticante de exercícios físicos desde muito tempo, era vigoroso. Às vezes, eu me portava como um guru e ele aceitava o papel de Gafanhoto; quando lhe disse que o aparelho de equilíbrio era ótimo para o cerebelo, a região do cérebro que regula a nossa psicomotricidade, ele, que só se preocupava com os músculos e os sistemas cardiovascular e cardiorrespiratório, passou a se equilibrar.

Quando estávamos nos simuladores, conversávamos tanto que, quando eu olhava o relógio, já havia passado 30 minutos e eu lhe confessava que, sozinho, não chegaria aos 15 minutos por causa do fastio de estar só. Ele era, podemos dizer, o meu amigo da madrugada. Assinale-se que esses encontros se davam aos sábados, domingos e feriados por causa da minha ida ao trabalho antes das 5h 30min da manhã. Nos dias úteis, eu aparecia lá antes dos pores de sol, mas, então, era o Jessé que ainda se encontrava no seu trabalho.

Num fim de semana, Jessé não pareceu na hora costumeira. No fim da semana seguinte, surgiu meio combalido e me explicou o porquê: caíra no boxe do banheiro do seu serviço, enquanto tomava banho. Mesmo sentindo dores, tentou alguns exercícios até se dar por vencido. Disse-me que fora orientado pelo médico a fazer uma ressonância magnética, obedeceu, e, depois, quando reapareceu, e lhe perguntei pelo resultado, fez uma careta e deu três giros de 180º com a mão direita: “mais ou menos”.

Isso se deu por volta de novembro do ano passado, em seguida, Jessé sumiu. Nos primeiros meses de 2015, nada de ele ressurgir e eu me sentia como Robinson Crusoé sem o Sexta-feira e sem o celular (lembram-se da atualização da frase do Nélson Rodrigues?).

Será que deu zebra na sua cirurgia de próstata? – perguntava-me. Um dia, nesses interessantes diálogos sobre o simulador de esqui, ele me comunicou que seria submetido em janeiro de 2015 a uma operação da próstata, nada arriscado, pois se tratava apenas de uma prostatite que requeria apenas raspagem.

Por volta do mês de março deste ano, saindo para o trabalho, vislumbrei, na madrugada, um vulto na academia da terceira idade: era o Jessé. A operação da próstata?... Tudo correu bem, respondeu-me, o problema que ocasionou o seu sumiço foi uma depressão, já vencida e um assalto que sofreu. Agora, voltaria aos exercícios físicos, na Praça Manet, como antes.  Mentia, provavelmente, para si próprio, pois as suas aparições se tornaram raras.

Em um domingo, no meio de vários aparelhos que acionava, me contou o seu drama: sair de Maria da Graça e morar no Flamengo. Vivia desde garoto em Maria da Graça, numa casa com quintal onde cultiva árvores frutíferas e cachorros, mas a mulher dele insiste na mudança para a zona sul. Sofria com essa situação. Animei-o dizendo que, algumas vezes, em priscas eras, eu pegava o 298, saltava na Rua Santa Luzia, andava até o Aterro do Flamengo e corria na pista de Cooper que lá existe. Sim, para correr, o Flamengo não seria nada mal, mas ainda assim, ele não estava convencido com essa mudança e me comunicou que iria conversar muito seriamente com a esposa. Bem, parece que ela saiu vitoriosa, pois desde então, uns 4 meses, por aí, não avistei mais o Jessé.

Voltei a ser mudo e só na rocha de granito, como no verso do poema “Dom João” de Guerra Junqueiro. Assim, restringia-me, às vezes, apenas à caminhada que, como registrei mais acima, o enfado não me atinge, Três domingos atrás, depois de caminhar uns 35 minutos na academia da terceira idade, por sinal, imunda – por mais que os garis limpem, mais sujam – fui para a quadra de maior dimensão onde estendi a minha caminhada por mais 65 minutos.

Logo depois, retornei à academia para girar em 360º cada um dos meus braços, umas cinquenta vezes, pois não queria passar pelo sofrimento de dois colegas meus de trabalho que estão com os ombros avariados. Assim, rodava eu meu braço no aparelho de rotação dos membros superiores, quando olho para o chão e vislumbro, no meio da imundície, algo que me pareceu um celular. Abaixei-me e peguei o objeto. Eu não era mais Robinson Crusoé sem celular.

    Era, na verdade, um smartphone, quando o manuseei, rapidamente, vi que havia facebook, whatsapp e outras coisas que, à primeira vista, eu não identifiquei. Voltei para casa com o dito cujo.

Achado não é roubado, mas se é possível saber quem é o dono, não resta a menor dúvida, que é roubo. Com que moral eu iria esculhambar o Lula, o Renan Calheiros, o Eduardo Cunha, o PT e o PMDB, em geral, se roubo celular? Escarafunchei o achado de todas as maneiras e não conseguia encontrar o nome do seu dono, aliás, não encontrava nome algum. Telefonei para meu sobrinho, e ele me aconselhou a continuar tocando na tela daquilo que a agenda apareceria. Segui seu conselho, e o máximo que consegui foi tirar duas fotos minhas em instantâneos lamentáveis.

Desisti e fui ler “Crime e Castigo”. Duas horas depois, o celular tocou, corri para atender, li, na tela, o nome “Toninho”, mas a voz dele não me chegava aos ouvidos. Quando tocou pela segunda vez, aconteceu a mesma coisa, mas notei que o número do telefone desse tal Toninho aparecia. No terceiro toque, eu anotei o número e, pelo meu telefone fixo, entrei em contato com ele. Fiquei, então, sabendo que ele morava na Rua Honório e que o dono do celular, Vinícius, também era morador do bairro. Como ele, Toninho, se encontrava nas proximidades, em menos de 20 minutos, já estava junto ao portão do prédio em que moro, recebendo das minhas mãos o que seu amigo perdera.

-Ele bebe e perde as coisas. - disse-me.

Eu caminho e acho, aquele já era o terceiro.  

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