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sexta-feira, 30 de outubro de 2015

2969 - ordem e progresso


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5219                            Data:  28 de outubro  de 2015

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SABADOIDO  (continuação)

 

-E a Yoná Magalhães morreu...

-A fila tem de andar, Carlinhos. - enveredou a Gina pelo humor negro.

-Acho que me espantei mais com a idade dela, oitenta anos, do que com a sua morte propriamente dita. – confessei.

-Como dizia o Seu Renato: “Só eu que fico velho?” – reportou-se meu irmão a um vizinho da Rua Chaves Pinheiro, indignado porque diminuíram a idade do craque do Cruzeiro, Tostão, valorizando-o.

-Para mim, ela se cristalizou nos cinquenta anos de idade, quando saiu nua na Playboy, esplendorosa, sem um retoque sequer, garantem os que trabalharam nas fotografias.

-Isso foi em 1985, Carlinhos, quando ela atuava no Roque Santeiro. - disse meu irmão.

-Ela já estava encarquilhada. - comentou a Gina ferinamente.

-Eu não vejo novelas, Gina; a última novela que acompanhei do princípio ao fim foi “Guerra dos Sexos”, em 1983 e vi alguns capítulos do “Vereda Tropical”, também nesse ano. De lá pra cá, só assisti a umas cinco ou seis minisséries, algumas excelentes como “Os Maias” e “Agosto”. Como a Yoná Magalhães não atuou em nenhuma dessas minisséries, eu a perdi de vista desde 1985.

-Ela trabalhou, em 2013, na novela “Sangue Bom”, já bem enrugadinha. - voltou a Gina à carga.

-Ótimo; a imagem dela que me ficou foi a do auge da beleza.

-Digamos: no crepúsculo da beleza. - interveio meu irmão.

-Recebo, às vezes, por e-mail, retratos das deusas do cinema na época do apogeu e depois de passados uns trinta anos. Sinto um travo de desgosto nessas comparações. (E fui mais extremado). Eu não vejo pessoas queridas mortas para que fique na minha mente a imagem delas vivas.

-Então, você não visita uma pessoa nem quando ela está doente?- criticou-me a Gina.

-Carlão – explodiu a voz do Daniel, com as vistas ainda no seu smartphone – Que botafoguense sem vergonha que você é!... Fala do aniversário do Pelé, e nada diz do Garrincha, que faz anos no dia 28 de outubro.

-Você vê, Daniel, que os maiores craques do futebol nasceram no mês de outubro. - brinquei.

-Garrincha nasceu no dia do Funcionário Público.

-Dia de São Judas Tadeu. - lembrou a Gina que, logo em seguida, se voltou para mim.

-Vai trabalhar?

-Transferiram o feriado para 1º de novembro.

-Trabalhar é força de expressão. - pilheriou o Claudio.

-É... os funcionários públicos têm essa imagem. Muitos que entraram, no último concurso, no meu serviço, gente capacitada, pois as provas foram bem complexas, imaginaram que, agora, ficariam de papo para o ar.

-E não ficaram?... - interessou-se meu irmão.

-Durante um tempo, os mais malandros até ficaram, mas entrou em vigor uma disciplina militar e eles tiveram de se enquadrar. Facebook e You Tube só não é bloqueado de meio-dia e vinte às quatorze horas; quarenta horas de trabalho semanais são averiguados, com rigor, no ponto eletrônico...

-Essa história de ponto eletrônico é o “me engana que eu gosto”, porque um bate pelo outro. - manifestou-se minha cunhada.

-Na época da nossa anarquia foi assim, mas agora, não. Se um servidor for pego marcando a chegada do outro ao trabalho ou a vinda do almoço, os dois vão ter de se explicar na corregedoria. Se não completar quarenta horas mensais sem justificativa comprovada, vêm os descontos nos salários.

-Carlinhos, como é Caxias, gosta.

-Claudio, eu não gosto é de multar uma empresa de navegação porque não avisou, no prazo de trinta dias, que houve mudança de endereço, que houve alteração no contrato social, conforme exigência da nossa legislação. Não gosto porque, num país em que as autoridades se usufruem de desvios de milhões e ficam impunes, eu me sinto meio esquizofrênico em multar porque não observaram trinta dias para avisar uma coisa que não vai prejudicar ninguém.

-Mas é você que multa, Carlão?

-Não. Mas tenho de indicar a irregularidade e o valor da multa para que um funcionário acima de mim decida.

-Com essa crise, é mesmo chato sair multando por aí, porque muitas empresas estão sentindo o baque e elas empregam as pessoas. - ponderou meu irmão.

-Eu já disse que estou lendo “Crime e Castigo” do Dostoievski...

-Ainda?...

-Já li mais de quinhentas páginas, faltam menos de trinta. Siydrigailov já se matou... Mas deixem-me continuar se não perco a linha do raciocínio.

-Continua, Carlão.

-Numa das notas de rodapé do livro, o tradutor explica que, antes de 1917, o serviço público na Rússia seguia a hierarquia militar; havia, para exemplificar, servidores públicos tratados por coronel.

-Você, Carlão, seria um coronel, se o mesmo método fosse utilizado no Brasil?

-Daniel, eu seria, digamos, um tenente. E já está muito bom assim. Prefiro a disciplina à anarquia, mas não gosto de mandar.

-Carlão prefere obedecer a mandar.

-Acertou, Daniel, mas não obedecer cegamente.

-Você já leu o Globo de hoje, Carlinhos?

Após a minha resposta negativa, meu irmão prosseguiu:

-Um russo de 98 anos de idade... Está aí no caderno Prosa que foi engolido pelo segundo caderno do Globo. - indicou com a cabeça o jornal.

-Já descobri – disse com o Globo nas mãos – Boris Schnaiderman, pioneiro na divulgação da literatura russa no Brasil.

-Ele diz que traduziu as obras do Dostoievski para a nossa língua, mas, teve, mais tarde, de voltar a essas tradições porque os revisores brasileiros passaram tudo para o português castiço e o Dostoievski escrevia num russo coloquial.

-Claudio, nessa edição da Prefeitura do “Crime e Castigo”, que estou lendo, o tradutor, que faz a transliteração diretamente do russo para o nosso idioma, coloca várias notas sobre o estilo pouco formal do escritor. Ele diz que Dostoievski usava, algumas vezes, duas conjunções adversativas juntas -”mas todavia ele foi até lá” - misturava os tratamentos da segunda pessoa do singular e da terceira - “tu e você” - e por aí vai.

-Na realidade, as pessoas falam assim mesmo. - acentuou meu irmão.

-Como Dostoievski foi o escritor de primeira grandeza, ele e Gogol, a trazer os pobres miseráveis para a literatura, eles não poderiam falar mesmo como universitários de Harvard.

-Como universitários de Harvard, eles falariam inglês, Carlão. - aproveitou o Daniel a deixa para mais uma piada.

-Daniel, daqui a pouco estaremos saindo para almoçar. - alertou-o a Gina.

-Vou ao estacionamento ver se o meu carro dormiu bem.

Colocou o smartphone no bolso e saiu.

 

 

 

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