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quarta-feira, 18 de novembro de 2015

2981 - Cole ou não cole?


 

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5231                              Data:  14 de novembro  de 2015

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127ª VISITA À MINHA CASA

 

-Cole Porter, eu só sei dormir, ler e escrever ouvindo música. Uma mania, pois se me perguntarem uma hora depois o que ouvi, não sei responder na maioria das vezes, porque não presto a menor atenção; a música me é necessária como a respiração, é isso. Entrementes, há cinco ou seis canções que me fazem parar tudo para ouvi-las e “So In Love” é uma delas.

-Pertence ao meu musical “Kiss Me, Kate”. Pensavam que eu estava acabado, mas mostrei a todos que as músicas não me tinham abandonado.

-Uísque? - ofereci-lhe.

-Precisei beber um oceano de uísque para não cair de vez depois de quebrar as duas pernas. Não vou abandonar o uísque, agora, que estou morto. Aceito um copo.

-Um dos seus maiores intérpretes, Frank Sinatra, pediu para ser enterrado com uma garrafa de Jack Daniels.

-Prefiro o Scotch, talvez porque tenha vivido muitos anos na Europa, em Paris, precisamente.

  -É interessante, provocante... não sei a palavra exata, que os Estados Unidos tenham deixado um artista com o seu talento extraordinário mudar-se para outro país.

-Eram os anos 20, da “Geração Perdida”. Em Paris, eu não era o único americano, Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, por exemplo, também estavam lá.

-Você nasceu em 1891?

-Sim; nasci no Peru... cidade do estado de Indiana, bem entendido (acrescentou com um sorriso zombeteiro).

-Há no seu estado, também, uma cidade chamada Brazil, se você nascesse lá, diriam por aqui que você é brasileiro.

-Nem sequer estive no Brasil enquanto vivo.

-Dia desses, recebi uma mensagem eletrônica com um vídeo de marchas de bandas brasileiras acompanhado de um texto...

-Embora, eu não saiba bem o que seja mensagem eletrônica, prossiga, por favor.

-No texto, lia-se que você ficou tão deslumbrado com o jeito de os músicos brasileiros marcharem que perguntou ao Ary Barroso qual era o segredo.

-O Ary Barroso esteve nos Estados Unidos, mas eu não estive, com toda certeza, no Brasil.

Riu e prosseguiu:

-Por que o Ary Barroso não se fixou nos Estados Unidos?... Ele ganharia muito dinheiro.

-A justificativa dele é que não havia Flamengo e couve mineira nos Estados Unidos, mas o implacável crítico de música popular, José Ramos Tinhorão, escreveu que ele não ficou porque não sabia ler uma partitura, o que era fundamental para se trabalhar como músico do Estúdio da Disney. Falando nisso, Cole Porter, você conhecia os meandros musicais profundamente.

-Desde a primeira infância, eu já aprendia música com a minha mãe. Estudei violino com seis anos de idade e piano, com oito. Com dez anos, escrevi a minha primeira opereta, a minha mãe me ajudou, é claro.

-Você era um Mozart?

-Guardadas as infinitas proporções, faça-se essa comparação. A minha mãe chegou a modificar o ano do meu nascimento, 1891, para 1893, para eu parecer ainda mais precoce.

-Você pertencia a uma família de posses.

-O pai da minha mãe era especulador de carvão e madeira. Ele tinha muito dinheiro e, consequentemente, poder. Assim, determinou que eu seria advogado.

-Pena que a sua mãe, Cole Porter, não conseguiu demovê-lo dessa ideia que o desviava da sua vocação.

-Fui para a Academia de Worcester, em 1905, e, em 1909, para a Universidade de Yale.

-Ficou, assim, afastado da música. - lastimei.

-O que não me impediu, na Universidade de Yale, de compor umas 300 canções. “Bulldog Bulldog” e “Bingo Eli Yale”, que compus para o time de futebol americano de Yale, sempre foram tocadas, soube que mesmo depois de eu ter morrido.

-Quando você foi para a Universidade de Harvard?

-Fui, em 1913; estava, vejamos... com 22 anos, Fiquei um ano na Faculdade de Direito e, depois, mudei para a Faculdade de Artes e Ciência.

-Assim, pelo menos, você ficava mais próximo da música.

-Com 25 anos de idade, estreei, como compositor, a primeira produção na Broadway com “See American First”, o libreto era de Lawrason Riggs. Um fracasso, apenas duas semanas em cartaz.

-Mas você é músico e letrista, talvez, o fracasso fosse causado pelo libreto, que não ser seu.

-Outros fracassos meus se sucederam na Broadway. Não sei se os americanos não entendiam a minha música... não sei. Parti, então, para a buliçosa Paris.

-Essa sua ideia não custou pouco dinheiro para quem possui o seu padrão de vida, acredito.

-Vendi músicas e recebi mesadas da minha mãe e do meu avô.

-A França vivia um momento terrível quando você se mudou para lá.

-Ah, sim: vivia a Primeira Guerra Mundial; se, por um lado era ruim, por outro era bom, pois os franceses necessitavam da muita música para esquecer as agruras da realidade.

-Você vivia em Paris, nas luxuosas festas, desfrutando da amizade de celebridades, querido por homens e mulheres.

-Eu era disputado nessas festas, havia sempre um piano bem afinado, esperando por mim. Eu tocava e podia até cantar, que todos adoravam.

-Numa dessas festas, você conheceu a sua futura esposa, Linda Lee Thomas?

-Ela era divorciada e me amou de verdade.

-Eu assisti a um filme, Cole Porter, sobre a sua vida, que mostra o Irving Berlin, outro músico extraordinário, com mais de três mil composições, letra e música, convencendo-o a mostrar o seu talento no seu próprio país.

-Dei adeus aos rapazes e retornei para os Estados Unidos com a Linda; agora, com o firme propósito de ser reconhecido pela crítica e pelo público americano.

-E como foi!... – exclamei.

-Eu não era Arnold Schoenberg para, desdenhosamente, virar as costas para a plateia que o aplaudia.

E prosseguiu:

-Nos primeiros anos foram só vitórias, até que a Linda me deixou porque eu estava saindo muito com os rapazes.

-Disseram que você era mais homossexual do que bissexual.

-Rotulem-me como quiserem, mas a ausência da Linda era uma lacuna insuportável. A queda do cavalo foi tenebrosa para mim, mas, pelo menos, me trouxe de volta a minha esposa.

-Foi em 1937, quando você estava com 48 anos?

-Sim; quebrei as duas pernas. Os médicos aconselharam à minha esposa e à minha mãe que a minha perna direita, pelo menos, fosse amputada. Elas não concordaram.

-Você, também, não.

-É verdade, mas sofri dores crônicas por toda a minha vida. Fui submetido a mais de trinta operações enquanto vivi. Afoguei-me num oceano de uísque.

-Mas nunca deixou de compor. – assinalei.

-Mas a inspiração não era a dos velhos tempos. Eu não reeditava os êxitos das minhas produções da Broadway, mas mesmo quando o sucesso não era o esperado, despontava uma canção como “Begin the Beguine”.

-Ela foi composta depois de “Night and Day”?

-Foi; ela é de 1935, e “Night and Day”, da minha peça “Gay Divorcee”, de 1932.

E prosseguiu:

-Depois da minha tragédia, com tantos fracassos na Broadway, fui tido como acabado. Então, em 1948... um pouco antes, resolvi transformar “A Megera Domada”, de Shakespeare, num musical intitulado “Kiss me, Kate.” Foi um sucesso que me fez esquecer as muletas, as dores...

-É nesse musical que está a fascinante canção “So In Love”, de que lhe falei quando aqui chegou.

-Foi, de certa maneira, uma segunda volta minha ao triunfo no meu país, a grande diferença era que, quando retornei de Paris, estava cheio de vida.

-Maravilhosas canções foram compostas nessa sua nova fase.

-Em 1952, perdi a minha mãe; dois anos depois, Linda perdeu a batalha contra um enfisema.

-Ela era uma fumante inveterada. - comentei para, em seguida, arrepender-me.

-Quatro anos depois, em 1958, amputaram-me a perna direita. Como eu vou ficar de pé sem elas para me ampararem?... Não quis saber mais de compor nos meus últimos seis anos de vida. Eu estava com 67 anos de idade; com muito sofrimento, cheguei aos 73 anos. Há muito tempo que o fio das Parcas estava tensionado demais, para o meu alívio, ele arrebentou.

-Você foi enterrado na sua cidade natal?

-Sim, ao lado dos túmulos da minha mãe e da minha esposa, as duas pessoas mais importantes da minha vida.

-Você, que não teve filho, deixou uma enorme herança, não foi?

-Ah, sim; eu tinha de pensar nessas coisas antes de morrer. Metade das receitas dos meus direitos autorais foi para os filhos de Ray Kelly, que foi meu amigo durante décadas. A outra metade eu espalhei por aí.

Com a mesma naturalidade com que chegou, Cole Porter se foi. (*)

 

(*) Sem terminar o uísque. Pena que só durou um.

   

 

 

   

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