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quarta-feira, 7 de outubro de 2015

2953 - Alavancado Dicionário Biográfico


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5203                                      Data:  05  de outubro  de 2015

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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO XLVIII

 

ATROPELAMENTO (02) – Quando o motorista que me atropelou pôde falar comigo, ele disse que me colocou no seu carro, um Passat, com o amigo, que ainda estava com ele ali, no hospital, e mais duas moças que se prontificaram para serem suas testemunhas. O que mais me surpreendeu foi quando ele me informou que acordei no meio do trajeto para o Salgado Filho e, mais surpreendente ainda para mim, caminhei com os dois, normalmente, até a emergência. Como assinalei, anteriormente, eu recobrei a consciência no meio de um questionário a que fui submetido por um funcionário do hospital na presença de um policial. Eu não falei antes do policial?... Ele tem de ser mencionado, pois deixou o rapaz que me atropelou assustado.

-Eu e meu amigo – indicou-o com a cabeça – estávamos indo para o Rei do Bacalhau, no Encantado, quando você surgiu, em um segundo, na minha frente, afundei o pé no freio, mas...

Olhei para o meu Seiko, que estava arranhado e com o ponteiro saltando, depois da pancada, de dois em dois segundos, mas sem perder a precisão suíça, embora fosse japonês.

Havia cheiro de éter e as lâmpadas estavam acesas; já anoitecera na estação em que o sol demora mais a ir embora, sinal que  era muito tarde. Como estavam reagindo os meus pais, que já roem as unhas de preocupação com 30 minutos de atraso dos filhos?  Soube mais tarde.

Meu pai telefonou para o meu irmão Claudio expressando a sua aflição com a minha demora; meu irmão, que nunca admitiu esse excesso de zelo paterno com ele, pilheriou, disse-lhe que eu arrumara uma mulher no caminho. Outro telefonema foi dado pelo meu pai, agora para o meu trabalho, e o meu colega e amigo Arnaldo lhe disse que eu voltara para a casa há muito tempo. Contagiado pela agonia do meu pai, ele comunicou a outros colegas do meu sumiço (embora os sequestros estivessem na moda, ninguém aventou essa hipótese).

Houvera um atropelamento, que o sogro do meu irmão, sentado na varanda da casa viu, ou melhor, ouviu o som lúgubre e prolongado da freada e os comentários dos que passavam em frente à sua casa: “este morreu”. O que ele viu, isso sim, foi um amontoado de curiosos, no local do acidente, que logo se desfez.

Como a minha demora se tornava mais angustiante, o humor do meu irmão se apagou e ele foi até o posto de gasolina, defronte à sua casa, colher informações sobre o tal atropelamento. Lá, os frentistas guardaram os meus sapatos e o envelope que eu levava; nele estava uma edição da revista “Afinal”, de que eu era assinante, com a reportagem de capa sobre a censura ao filme de Godard “Je Vous Salue, Marie”. Quando o Claudio pegou a revista, leu o meu nome, suou frio e correu para o Salgado Filho, hospital para onde me levaram, segundo os frentistas.

A minha irmã, em Santa Rosa, Niterói, quando soube do meu atropelamento, soltou um grito que levou a minha sobrinha, Verônica, com 5 anos de idade, a comentar com a irmã: “Mamãe está assim porque o papai não deu dinheiro para ela.”

As coisas, agora, no hospital, aconteciam rapidamente. Apareceu, em primeiro lugar, meu irmão, que respirou aliviado quando me viu e constatou que as previsões macabras sobre mim não se confirmaram. Depois, veio a Glória, uma colega de trabalho, com o marido, deu-me um beijo na testa e voltou para o seu apartamento no Leblon.

Meu cunhado e minha irmã surgiram por último; a expressão de desafogo da minha irmã; ao me verem bem, não durou muito, porque gritos desesperados de uma paciente feriram os seus ouvidos.

Quando fui liberado pelo médico de plantão do Salgado Filho, vim para casa no táxi do meu cunhado, eu e todo mundo, menos o atropelador, que foi à minha casa no seu Passat, sem o seu amigo, que tinha outros afazeres. Eu estragara os bolinhos de bacalhau dos dois.

Logo que soube, pelo meu irmão, que eu havia sido atropelado, meu pai arremessou o primeiro objeto que estava à mão contra um quadro em que aparece Jesus Cristo de corpo inteiro e o xingou por diversas vezes. Com a minha chegada, houve uma transformação religiosa; a minha mãe falava que eu nasci outra vez e que encomendaria uma missa pelo milagre que me salvou a vida. O motorista do Passat, que sentara num sofá, pediu, em seguida, que lhe informassem sobre a igreja, o dia e a hora, pois ele fazia questão de estar presente na cerimônia.

O humor voltou ao meu irmão que, junto do filho Daniel, com 3 anos de idade, e da Gina, minha cunhada, disse que eu buscara esse empurrão do carro para ficar mais perto da White Martins, que tinha uma fábrica no final da rua Cachambi. Ele sabia que as ações da White Martins alavancavam o meu minguado salário, principalmente naqueles primeiros dias ilusórios do Plano Cruzado.

 

 

 

 

 

 

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