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terça-feira, 13 de outubro de 2015

2956 - atropelados e atropelandos


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5206                                      Data:  09  de outubro  de 2015

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CARTAS DOS LEITORES

 

“Pela narrativa do seu atropelamento, saltou um passageiro junto de você, quando o ônibus deu a “paradinha”. Que diferença houve entre vocês para um ser atropelado e outro não?” Tomires

BM: Meu caro Tomires, você já viu um cachorro, desses vadios que andam por tudo que é lugar, atravessando a rua e um gato? O cachorro atenta para os carros que passam e até para – já vi vários casos – depois de percorrer metade da travessia, para um veículo seguir em frente, para reiniciar a sua caminhada até a calçada oposta. O gato, não, parece que fecha os olhos e dispara para a calçada como se estivesse na selva  dos seus antepassados, ou seja, os instintos primitivos dos bichanos são mais arraigados do que a dos cães.

No caso do meu atropelamento, o passageiro que saltou comigo teve a perspicácia canina de dar dois ou três passos para o canteiro que divide as duas pistas da Avenida Suburbana e se pôr a salvo do tráfego, enquanto eu fui precipitado como um felídeo. O resultado para mim foi dolorido.

 

“Num tempo perdido no passado, eu li, algures, uma página que dizia quando Abraão Lincoln era adolescente, desmaiou com o coice de um cavalo, quando voltou a si repetiu a mesma palavra antes de ser escoiceado: “Go”, ou outra parecida, não me recordo mais qual foi. A nossa mente é complexa. Lendo sobre o atropelamento do “mitron” (como a Rosa chama os fazedores de biscoito, na França, e também de pães) soube que, no hospital, ele, aparentemente, voltou a si, mas, na verdade, estava ainda inconsciente.” Procópio

BM: Por isso, eu usei a palavra “nocauteado”; esta era – para continuarmos com os francesismos – “Le mot just”, a palavra adequada, que era a busca obsessiva  de Flaubert, quando escrevia.

 Há boxeadores trocando socos com seus adversários, mas estão inconscientes, nocauteados em pé. Os árbitros têm de ser experientes para encerrar a luta e evitar um massacre.

Sabe-se que Mike Tyson, depois de ser nocauteado pelo Evander Holyfield (foi o combate de 1996, em que não houve mordida na orelha), compareceu à entrevista com a imprensa pensando ter vencido a luta.

 Mas a nossa mente é mesmo complexa, como você disse. Um dos recursos do árbitro para se certificar que um boxeador está inconsciente é perguntar-lhe seu nome. Eu, quando estava fora de mim, no Salgado Filho, me identifiquei corretamente no preenchimento da minha ficha.

 

-O atropelado deveria ter escrito mais algumas páginas sobre a sua convalescença, mas não, terminou tudo repentinamente, como naqueles filmes que passava no Cinema Paissandu, no final dos anos 60 e início dos 70, chamados de geniais pela plateia porque ninguém entendia nada e fazia segredo sobre isso.” Pavão

BM: Como foi escrito, eu senti, durante dezesseis dias, dores na coxa direita, parte lateral, onde ocorreu a pancada do Passat e uma distensão na virilha.  O que me deu mais trabalho foi a virilha; fazia aplicações diárias de gelo no local por uma hora, enquanto assistia televisão para me distrair daquele incômodo. Eu já estava trabalhando, porque a virilha não reclamava de eu andar; o problema era eu correr. Tentei uma vez retornar ao cooper, mas tive de parar porque a dor encruada me impedia de ir em frente; nas outras duas ou três tentativas, deu-se a mesma coisa.  Mas fiquei tão aferrado à ideia de retornar às corridas, que insisti até a dor sumir de vez.

 

-“O redator do Biscoito Molhado não ficou preocupado de chegar em casa e saber que seus pais tinham alugado o seu quarto, devido ao atraso tão prolongado da volta do trabalho no dia do atropelamento?” Ananias

BM: Essa piada dos pais alugando o quarto do filho, por causa de uma curta ausência, é do Woody Allen. Ela não ocorreu ao meu irmão Claudio que, depois de se certificar que tudo estava bem, disse mil piadas.

 

“Como investidor da Bolsa de Valores – fiz muitos investimentos para mim e para meus colegas jogadores de futebol, na euforia de 1971 (depois veio aquela queda de 70% no preço das ações) – atentei, na história do seu atropelamento, para o que seu irmão disse, que você queria chegar mais perto da White Martins. Eram os primeiros dias ilusórios do Plano Cruzado. Você não se arrependeu de ter querido ficar mais perto dessa empresa? Moisés

BM: De ser atropelado sim, eu me arrependi, mas de comprar ações da White Martins, não. Visto sob certos ângulos, há semelhanças entre o milagre brasileiro de 1971 e o Plano Cruzado, principalmente sob o prisma da Bolsa de Valores.

Quando o Plano Cruzado foi anunciado em 28 de fevereiro de 1986, eu me lembro que apenas dois formadores de opinião ficaram contra: Brizola, por interesses políticos (o PMDB tiraria votos do PDT) e Roberto Campos, pela lucidez na ciência político-econômica. Mário Henrique Simonsen se empolgou, no princípio, porque alguns discípulos seus, como André Lara Rezende, o elaboraram. Simonsen não atinou que os políticos meteriam a sua colher de pau no Plano para encaroçar tudo.

Nos primeiros dias, semanas e meses do Cruzado, quando muitos se diziam fiscais do Sarney, os valores das ações subiram como rojões de festas juninas. Nesse clima de exuberância, Reinaldo, um amigo dos tempos da Rua Chaves Pinheiro, entregou-me um estudo da Marilene Barcelos, uma consultora de investimentos, que analisou os principais papéis e o índice da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro e de São Paulo. Mostrei esse estudo ao Coronel, um investidor muito chegado a mim, na Corretora Caravello; e ele me pediu que não mostrasse “isto” a ninguém, pois todos ficariam assustados. Era coisa de Cassandra e era mesmo; ela previu que Troia seria vencida e destruída pelos gregos e acertou.

Antes de se confirmar o engodo que foi o Plano Cruzado, os preços das ações já vinham despencando e os mais velhos, como o próprio Coronel, lembraram a desilusão que foi do segundo semestre de 1971 ao primeiro de 1972 na Bolsa de Valores.

Quando a derrocada chegou ao fim, peguei esferográfica e papel para contabilizar o meu prejuízo, que não foi muito por causa da White Martins, que não decepcionou seus acionistas – não havia estelionato eleitoral que derrubasse as ações dessa empresa. Infelizmente, anos depois, fechou o capital.

 

-Era um Passat TS LS?... Farol retangular?... Ano?... Era daqueles fabricados no Brasil e exportado para o Iraque, quando estava em guerra contra o Irã? Carlos Alberto Torres. (*)

BM: O Luca só quis saber o número da chapa do carro que me atropelou, mas você é exigente. Já disse que nada sei. Nas visitas que o atropelador me fez, certamente deixou o Passat estacionado diante do prédio onde eu morava, mas eu estava muito depauperado para descer a escadaria para vê-lo e satisfazer todas as curiosidades. Se eu pudesse chagar até o Passat, eu lhe diria: não podemos nos encontrar daquela maneira.

 

(*) Colecionadores de automóveis antigos têm todo tipo de obsessão. Das mais simples – como desejar saber, com precisão, qual tipo, cor, ano – que não prejudicam ninguém, mas até algumas complexas, de difícil explicação e que podem precipitar traumas familiares, como estender sua volúpia colecionadora a objetos estranhos, como manteigueiras com corpo de galinha, pratos esdrúxulos, caixinhas diversas, ou até barbeadores elétricos.

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