Total de visualizações de página

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

2949 - longevos e cheirevos


-------------------------------------------------------------

O BISCOITO MOLHADO

Edição 5199                                   Data:  29 de setembro de 2015

 

 

SABADOIDO

 

 

Meu irmão não ficou mais do que quinze minutos cortando a roseira.

-Fica pra depois, fiz bicicleta, quando amanhecia e estou, agora, cansado. - disse, enquanto guardava a tesoura.

-Conseguiu tirar a barulheira da bicicleta?

-Nada; cada pedalada é um rangido.

-E os vizinhos?

-Está escutando?...

Apurei os ouvidos e percebi o que me parecia uma briga de casal vindo do prédio de dois andares do lado.

-Com as pedaladas, eu baixei o ácido úrico do sangue e minhas inchações sumiram.

-Vários colegas meus de trabalho, que tiveram gota, foram obrigados a maneirar na ingesta alcoólica, como dizem os médicos.

-Os médicos dizem isso mesmo? - estranhou.

-Sabe o meu amigo da Sunamam que trabalhou no filme “A Rainha Diaba”, Arnaldo Muniz Freire de Lima Lages?...

-Lembra-se do nome dele todo?

-Lembro-me porque é um nome parnasiano; um verso hendecassílabo com as tônicas na quinta e na décima-primeira sílabas.

Entusiasmado, acrescentei:

-Mas Olavo Bilac era imbatível; Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac, verso em alexandrino perfeito. Nome que veio a calhar para o nosso melhor poeta parnasiano.

-O pai da Rosa criticou o Olavo Bilac? - indagou.

-O Agripino Grieco considerava Castro Alves o maior poeta brasileiro, mas respeitava o Bilac.

-Se Castro Alves não tivesse morrido com 24 anos de idade, seria mesmo. – imaginou.

-Como eu dizia, o Arnaldo me mostrou uma receita em que o médico lhe dizia para forçar a ingesta líquida, ou seja, que bebesse muita água.

Uma vez, o Antonio Houaiss escreveu ninfa potável no lugar de água.

-Nem toda água é potável.

-Claudio, estou relendo “Crime e Castigo”, de Dostoiévsky.

-Rapaz, eu li esse livro há tanto tempo.

-Eu li há uns 40 anos e, há 20, mais ou menos, topei com um texto do Paulo Francis em que ele diz que, até a primeira metade, “Crime e Castigo” é uma obra-prima, mas, que na segunda metade, se transforma numa novela da Janet Clair.

-O Paulo Francis escreveu muita bobagem. - reagiu meu irmão com desdém.

-Eu já reli as 120 primeiras páginas e não conheço autor algum que tenha explorado literariamente tão bem a alma de um criminoso.

-Mas o livro não é só isso.

-Claro. Victor Hugo retratou os miseráveis dentro dos parâmetros do romantismo, mas Dostoievsky retrata os miseráveis como eles são, na realidade, e estabelece uma diferenciação com os pobres, pois nestes ainda restam a dignidade, a vergonha.

-O miserável já perdeu tudo. - atalhou.

-Claudio, esse livro do Dostoievsky é de uma atualidade gritante. A única diferença que constato dos miseráveis de Dostoievsky com os que esbarro, hoje, é que estes fumam craque e os do escritor se incham de vodca.

-O problema dos livros dele são os nomes dos personagens, Carlinhos.

-Até os russos tinham problemas; o Raskólnikov, por exemplo, é chamado, às vezes, de Ródia. Ainda não cheguei ao Zózimo, mas é um nome que me acompanha desde garoto por causa do futebol.

-Zózimo não é de outro romance do Dostoievsky?

-Deve ser, Claudio, eu faço confusão... Tenho, por isso, de reler todo o Dostoievsky.

-Mesmo menos complicado, ninguém fala Ródia, e sim Raskólnikov.- afirmou.

-Uma das grandes vantagens do livro que leio é a tradução direta do russo para o português; até então, tínhamos traduções de segunda mão; os autores russos eram traduzidos, geralmente, do francês para o nosso idioma.

-Como dizem que tradutor é traidor, havia uma traição dupla. - deduziu.

-Antônio Feliciano de Castilho, poeta romântico português do século XIX, que estudamos no ginásio, traduziu o Fausto de Goethe partindo de uma tradução francesa, pois não conhecia a língua alemã.

-Eu ganhei o “Crime e Castigo” da Roberta (professora do município, sobrinha da Gina). Ela me disse que precisava de espaço no apartamento em que mora e me perguntou se eu queria o livro.

-Eu ganhei do Lopo (nosso irmão) que, por sua vez, o recebera da Ângela (ex-companheira, também professora municipal).

-Então, é a mesma edição distribuída pela Prefeitura. - concluiu, enquanto pegava o livro na estante, próxima à cozinha e me mostrava.

-Vale reler, Claudio; não só pelo que eu disse, mas pelos esclarecimentos no rodapé sobre medidas, por exemplo, pois os russos não usavam o sistema métrico decimal.

-Vamos ver. - disse.

Passei da literatura para o cinema.

-A NET tem o NOW, em que ficam à nossa disposição dezenas de filmes para ser vistos.

-Vez ou outra, a Gina ou o Daniel acessam esse canal.

-Semana passada, querendo assistir a um filme, entrei no NOW, e escolhi “O Jardineiro Fiel”, por causa do Fernando Meirelles, o diretor.

-Sei; é um filme que se passa, na sua maior parte, na África.

-Gosto muito do Fernando Meirelles. A minissérie “Os Maias”, que ele dirigiu, foi antológica. Considero “Cidade de Deus” um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Ele dirige, agora, no Theatro da Paz, em Belém, a ópera “Os Pescadores de Pérolas”, de Bizet, e, pelo pouco que vi, deve ser um deslumbramento.

-Ele dirigiu, em “O Jardineiro Fiel”, um dos maiores atores da atualidade, Ralph Fiennes. - lembrou.

-A atriz, que não é muito conhecida por mim, Rachel alguma coisa, também foi premiada pela sua atuação nessa fita. - acrescentei.

-Eu li sobre esse filme quando foi lançado nos cinemas, Carlinhos. Ele investiga a morte da esposa que contrariou interesses de laboratórios farmacêuticos que usavam os africanos como cobaias.

-Há uma cena do filme em que um carro persegue o dele. Nesse instante, eu me senti decepcionado com o Fernando Meirelles por ter caído nesse clichê, mas não era nada disso; o diretor fazia uma sátira à Hollywood, o motorista que perseguia o carro do personagem do Ralph Fiennes era um gozador de piadas de mau gosto.

-Há um toque brasileiro do filme? - quis saber.

-Bem, em uma cena o Ralph Fiennes usa uma bermuda igualzinha a minha, parece até que comprou numa loja do Nova América.

-Aquela que a Gina lhe deu de presente?

-Isso, ela me presenteou com duas, todas de cor bege, como as do Daniel.

-Falando em Daniel, ele só foi ao “Rock in Rio”, no dia da apresentação do “Queen”?

-Ele foi com a Roberta e com o Valtencir a outro show. 

-O Ruy Castro escreveu, na Folha de São Paulo, que nenhuma outra música envelheceu tão bem como o rock, porque o seu publico não abandona seus artistas mesmos quando passam dos 70 anos. Diferentemente com o que aconteceu com os cantores dos anos 60 que, mal chegavam aos 50 anos, eram abandonados pelos empresários e pela mídia. Grosso modo, foi isso que ele disse.

-Carlinhos, não concordo muito não. Frank Sinatra, longe da sua bela voz, cantou até perto dos 80 com plateias enormes. O que dizer do Tony Bennett ainda canta aos 89 anos, a idade da mamãe?...

-E o Tony Bennett já cheirou cocaína.

-Cheirou como os cantores de Rock, Carlinhos.

-Vá ver que a cocaína é o segredo da longevidade deles. - concluímos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário