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quinta-feira, 8 de outubro de 2015

2955 - Radiografado Dicionário Biográfico


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5205                                      Data:  07  de outubro  de 2015

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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO XLIX

 

ATROPELAMENTO (03) – Depois de as pessoas constatarem que eu estava vivo, conversavam durante algum tempo e saíam para dar tratar dos seus afazeres. Eu estava vivo e com fome. Havia almoçado, nesse dia 5 de março de 1986 no Rick, lanchonete do empresário Ricardo Amaral, da Praça Monte Castelo. Faltaram arroz e feijão naquele prato – o cereal e a leguminosa que me deixavam satisfeito – e eu pretendia compensar esse vazio enchendo o meu prato na janta. Mas os acontecimentos dramáticos impediram que se cozinhasse alguma coisa para o jantar, em casa e eu tive de devorar um saco de biscoito, que estava pele metade. Nem erguendo esse saco, como se um copo fosse, para beber o farelo, adiantou. Maldisse o meu almoço frugal, sem pensar que ser atropelado com a barriga vazia provoca menos danos ao organismo.

Meu irmão Claudio se escalou, ou foi escalado, não me recordo bem, para dormir no meu quarto. Era aconselhável que eu não passasse a noite sem ninguém junto de mim. Na manhã seguinte, ele afirmava que viu uma das maiores armas anatômicas da vida dele; referia-se a um vizinho, morador do prédio da cooperativa da Aeronáutica, localizado na Rua Cachambi, em que alguns apartamentos ficavam devassados para o meu quarto. Será que ele viu mesmo, ou era mais uma das suas brincadeiras? Eu nunca havia visto nada, embora, ao contrário dele, tinha pouco a ver com aquele personagem vivido pelo James Stewart no filme de Alfred Hitchcock.

Mas a fita de cinema que eu sentia na carne era, infelizmente, outro, lançado pouco tempo atrás: “O Dia Seguinte”. Minha Nossa Senhora! Parecia que eu havia subido no ringue para enfrentar Roberto Duran Mano de Piedra; doía-me todo o corpo. Ficou estabelecido, então, que o meu cunhado me levaria, no seu táxi, ao Hospital dos Italianos, no Grajaú, que tinha convênio com o meu plano de saúde. Desci o único lanço de escada do prédio amparado por ele; cada movimento que eu fazia era uma tortura. Finalmente, fui colocado no seu carro e conduzido para a Rua Marechal Jofre.

Aquela pessoa que, horas antes, segundo o meu atropelador, entrara andando normalmente no Hospital Salgado Filho, não podia, agora, andar. A dor cruciante me deixava bem consciente de tudo o que ocorria ao meu redor. Um enfermeiro me trouxe uma cadeira de roda e eu fui conduzido até um médico. O doutor, ao me ver, declarou que eu ficaria internado, mas, antes, eu tinha de passar por uma bateria de radiografias. E lá fui eu ser radiografado mais uma vez.

Depois de examinar as chapas, o médico me disse que eu não sofrera fratura alguma. Citei a fratura do meu ísquio, conforme informação do Salgado Filho. Não, não havia fratura alguma – assegurou. Escreveu duas ou três receitas com garranchos que só os profissionais da sua classe e os farmacêuticos entendem e não tocou no assunto internação. Apesar da dor, senti um grande alívio.

Não me recordo de ter sofrido a mesma agonia na viagem de volta para casa, talvez porque algum remédio que me foi ministrado lá já fizesse efeito, além do fato de ser bem melhor para o emocional sair do hospital do que ir para ele.

No entanto, a dor na coxa da perna direita não cessava. A pancada do carro se deu nela e o padecimento persistiu por dezesseis dias contados pelos dedos.

Claudio foi tratar do meu pedido de licença no trabalho, para isso, teve de tratar do boletim de ocorrência na delegacia. Arnaldo, Glória e Ana Luísa, três colegas de trabalho, vieram me visitar. Disseram elas que o Arnaldo fizera tantas papagaiadas no metrô, que eu lamentei não estar entre eles.

O atropelador era um visitante assíduo; contou-me a sua odisseia: o para-brisa do Passat se espatifara, com o choque, que ele teve de ser atendido, depois, no Salgado Filho, pois a sua cabeça estava tomada de caquinhos de vidro que foram retirados com uma pinça na enfermaria.

De noite, minha irmã veio com as duas filhas, de Niterói, para mais uma visita. Em dado momento, pegaram os binóculos do meu pai e eu tive de dividir as atenções com o Cometa de Halley, mesmo com a decepção que foi essa sua passagem, bem diferente da que ocorrera em 1910, quando o poeta Carlos Drummond de Andrade lembrou, nas suas crônicas, que se falou até no fim do mundo. O Cometa de Halley de 1986 era apenas um ponto luminoso o que não impediu a minha sobrinha Verônica de pedir, ansiosa, os binóculos para ver a cauda do cometa. Com 5 anos de idade, ela estava sugestionada pelo “Lindo Balão Azul” da Turma do Balão Mágico.

Luca e Vagner pareceram, também numa noite, para me ver. Luca me pediu o número da placa, pois seria um promissor palpite para o jogo do bicho.  Mas o meu encontro com o Passat foi tão rápido que nem a sua cor eu vi, só conhecia a marca porque assim foi dito.

Além do dolorido nos quadríceps, a minha virilha direita, se não me engano, se distendera. Com as informações colhidas, eu deduzi o que acontecera comigo segundos antes e depois do meu apagão. No momento em que eu corri para a calçada, o Méier-Maria da Graça, seguiu para a Rua Chaves Pinheiro e os motoristas dos veículos daquela pista da Suburbana que tiveram a visão prejudicada, pela sua posição enviesada, seguiram adiante, foi quando, repentinamente, eu surgi diante do Passat. Com a trombada na minha perna, eu subi, abri o compasso (como dizia o locutor de futebol Oduvaldo Cozzi, daí a distensão na virilha) fui de encontro ao para-brisa, rolei pelo capô do carro e caí no asfalto desacordado. Uma moça, que buscara o filho da escola, ao se deparar com essa cena, a poucos metros dela, saltou um grito de horror. Talvez, ela e o filho pensem, até hoje, que eu não escapei com vida.

Os curativos das minhas feridas, durante os primeiros dias eram diários, e a Gina, minha cunhada, com a acurácia de uma enfermeira, resolvia esse assunto, sempre sob os olhares curiosos do Daniel, na época, com 3 anos de idade.

Eu costumava comprar ovos de páscoa para os meus sobrinhos, por isso, cismei de, na terceira semana desse mês de março, ir até meu trabalho e de lá. às Lojas Americanas da Rua Uruguaiana fazer as compras. Claudio foi comigo. A espera, a viagem de ônibus, a multidão, a barulheira, tudo mexia com os meus nervos em frangalhos, eu não estava em condições, ainda, de retornar ao trabalho. Revi os amigos, comprei os presentes achocolatados e retornei para casa. Meu prazo de licença teve de ser prorrogado por mais 15 dias.

Fui obrigado a ir ao 23º DP prestar depoimento sobre o meu atropelamento. Lá, topei com inspetor apressado, que não queria deixar nada pendente no seu último dia antes das férias, como me revelou.  Depois de olhar com desdém o polícia, carente de pensamento sadio, que aventou a hipótese de eu ter pulado do ônibus andando para não pagar a passagem, voltei-me para o inspetor e narrei tudo o que acontecera, isentando o motorista do Passat de qualquer culpa. Eu falava e ele datilografava. Depois, entregou-me o papel para eu assinar. Como os muitos erros não comprometiam ninguém, assinei.

O atropelador desapareceu após o meu depoimento, nunca mais soube dele. Nem quis saber da missa pela minha segunda vida, pretendida pela minha mãe, que, por sinal, não aconteceu.

 

 

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