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terça-feira, 29 de setembro de 2015

2947 - Eu não sei escrever


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5197                                    Data:  26 de setembro de 2015

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SABADOIDO

 

-Claudio, trouxe o doce do Daniel. – disse logo que ele abriu a porta para mim.

-O aniversário do Daniel é amanhã.

-São Cosme e Damião também, mas já trouxe o presente da minha mãe e o meu.

-Foram todos para o Parque da Cidade. – informou-me.

-Nunca fui lá, Claudio. Onde fica?

-Em Niterói; de lá se tem a melhor vista da cidade.

-Os niteroienses têm a vantagem das vistas da própria cidade e do Rio de Janeiro. – concluí.

-Sim; mas os assaltantes daqui estão indo para lá.

Este foi nosso diálogo enquanto rumávamos para a cozinha.

-Posso sentar na sua cadeira de ler jornal?

-Claro, eu já li; o entregador passou cedo.

Sentei-me e ele, que antes pegara alguma coisa na geladeira, sentou-se na sua cadeira de chupar laranjas.

-Carlinhos, o Luca deixou um envelope aqui para você; já lhe entregaram?

-Sim; eram cartas da Rosa; numa delas, ela conta que fez o supletivo de 1974, quando o Romualdo Carrasco aprovou todo o mundo, em Matemática, com a nota 4,5.

-Foi o mesmo que eu fiz. Eu me lembro até da escola da prova de Matemática.

Não prestei atenção quando revelou o nome da escola, pois me detive no que ia dizer a seguir.

-Ela se viu em palpos de aranha nessa matéria; beneficiou-se desse meio pontinho do “Bourreau”, como ela chama, de brincadeira, o Carrasco.

-E as outras matérias?

-Ela tirou com os pés nas costas. Claudio, a erudição da Rosa é espantosa. Ela envia para o Luca, para mim também, recortes de jornais, principalmente os artigos da Folha de São Paulo e corrige os erros com que se depara. Certa vez, corrigiu o Carlos Heitor Cony; ele escreveu que o mito da Fênix era grego; a Rosa sublinhou em vermelho e pôs ao lado: “mito egípcio”.

-Na Academia Brasileira de Letras, ele se tornou amigo do Roberto Campos e os dois recitavam poemas em grego. – lembrou-se.

-É verdade; os dois foram seminaristas e ensinavam um pouco de grego nos seminários. Mas a Rosa estava certa.

-Diferentemente do Doutor Sardinha, o negócio da Rosa não são os números, são as palavras. – deduziu o Claudio.

-Sim, mas quando ela diz que passou em Matemática chutando todas as questões está sendo modesta, pois ela estudou, alguns anos no Instituto de Educação, onde até o Ary Quintella deu aulas.

-Às vezes, Carlinhos, você fica na dúvida entre uma alternativa e outra, então, a sua chance de acertar é 50%.

-Lembra-se de uma época em que, nas provas de português do vestibular, só apareciam trechos do Carlos Drummond de Andrade para serem interpretados?

-Claro; os formuladores das questões se fixaram nele. – respondeu.

-Isso deu uma confusão danada, pois muitos candidatos não concordavam com as respostas oficiais. Assim, o telefone do Carlos Drummond não parava de tocar...

-Queriam que ele dissipasse as dúvidas. – atalhou.

-Sim; e para acabar com essa aporrinhação, o Drummond declarou: “Não sei me interpretar”.

-Carlinhos, não é raro um leitor enxergar uma coisa que o autor não percebeu.

-Concordo. Ao ouvir a leitura que o maestro Toscanini dera ao “Bolero”, Ravel reclamou que ele dera um andamento acelerado; réplica do Toscanini: “Você não entende nada sobre a música que compôs”. É claro que não é isso, pois o criador não é médium, mas uma obra pode ter interpretação diferente de quem a pôs no mundo, é subjetiva.

-Estou cortando uma roseira e está pior do que quando podei a árvore. -mudou de assunto, em termos, pois a Rosa não saiu inteiramente da conversa.

-Todo o cuidado é pouco com as roseiras; sempre nos espeta um espinho camuflado.

-Estou cortando os galhos com luvas, mesmo assim não estou protegido.

-Falando em proteção. Claudio, o que você tem a dizer sobre os arrastões?

-Grande parte da culpa é dessa juíza com aquele parecer de não abordar os suspeitos, a não ser com a constatação do flagrante delito. A PM fez uma espécie de greve branca,

-Há um internauta no Facebook que postou um vídeo em que se vê como a polícia trata os ladrões em via pública na Índia.

-Imagino.

-Dois, às vezes três policiais, agarram o infeliz, enquanto um espancador, com uma enorme vara de bambu, castiga inapelavelmente; são mais de dez varadas nas nádegas e nas pernas. Não sei se isso está resolvendo a criminalidade na Índia, mas esse internauta, que mora em Copacabana, pede esse corretivo para os que fazem arrastões no Rio de Janeiro.

-Vara de bambu deve doer pra burro.

-Claudio, esse internauta chama o Obama e o Papa Francisco de comunistas.

-Ele quer, então, o Bolsonaro para a presidência da República.

-O Capitão Bolsonaro... Cláudio, só na ditadura da esquerda um capitão pode chegar ao poder na América do Sul. Na Venezuela, por exemplo, o Chaves, que criou a ditadura bolivariana, era coronel.  A missão do Bolsonaro é defender os interesses dos militares e para por aí. Nas Forças Armadas, a hierarquia é um tabu, apenas generais chegariam ao poder maior.

-O Luís Fernando Veríssimo diz que os saem à rua para protestar contra o PT são adeptos do Bolsonaro.

-O Veríssimo está com hemorragia desatada de neurônios.

-Viu algum filme? – saiu, em boa hora, da política.

-Eu assisti, no Telecine Cult, a um filme do Ettore Scola “Que Estranho Chamar-se Frederico”; uma espécie de cinebiografia sobre o Fellini.

-O Ettore Scola dirigiu aquele filme que eu tenho em DVD, “Nós Que Nos Amávamos Tanto”.

-Ele narra que suplicou ao Fellini para atuar nesse filme, que você tem e venceu pelo cansaço.

-O Fellini já havia contracenado com a Anna Magnani, no papel de um pastor, que ela toma por São José, num filme de Roberto Rosselini, de 1948. A partir de então, ele só queria ficar atrás das câmeras, mas o Ettore Scola o convenceu abrir uma exceção.

-“Nós Que Nos Amávamos Tanto” é de 1975, por aí. - puxou pela memória.

-No filme “Que Estranho Chamar-se Frederico”, Ettore Scola conta que Fellini sofria de insônia, por isso, pegava o carro e saía pela noite, levando-o no banco do carona. Certa vez, Fellini levou, no banco de trás, pois o da frente já estava ocupado, uma prostituta. Ela fala animadamente, enquanto ajeita a maquiagem. Dizem que essa carona o inspirou a filmar “Noites de Cabíria”.

-Bem Carlinhos, fique aí, com o jornal, que vou cortar a roseira de novo.

-Não se esqueça das luvas de borracha.

   

 

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