Total de visualizações de página

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

2934 - disputas


----------------------------------------------------------

O BISCOITO MOLHADO

Edição 5184                                 Data:  7  de setembro de 2015

---------------------------------------------------

 

SABADOIDO

 

-Rapaz, eu tento fugir da imagem daquele menino sírio de três anos, encontrado morto numa praia da Turquia, mas não consigo. Ligo a televisão, aparece o menino, entro no Facebook e me deparo com mil postagens do menino sem vida.

-Se você abrir o jornal, aí sobre a mesa, vai ver o garoto. – preveniu-me o Claudio.

-Hoje, quando eu caminhava, com o radinho ligado no noticiário, falaram da declaração de um jornalista na Inglaterra sobre essa tragédia que deixou todo o mundo indignado.

-O que ele disse?- interessou-se meu irmão.

-Ele disse que o menino morto estava bem vestido e bem alimentado, que o pai buscava uma boa vida no Canadá.

A indignação passou também para o Claudio.

-Arriscam a vida num bote, amontoado de gente, pelo Mediterrâneo, ele perde a mulher e os dois filhos, e esse sujeito ainda diz que ele queria uma vida boa?!...

-Mal comparando, essa insensibilidade me lembrou do Paulo Francis. No auge do Pasquim, o cartunista Vagn se matou. Todos lamentaram, nos seus textos, que um artista de um potencial extraordinário na arte contemporânea tenha partido tão jovem, quando o Paulo Francis foi de encontro a todas as lamentações.

-O que ele disse?

-O Paulo Francis escreveu que Vagn não passava de um mero imitador de Steinberg, que não mostrou nada de novo nos seus desenhos. Lembro-me que, na edição da semana seguinte, o Ziraldo refutou as palavras do Paulo Francis com uma rispidez que imaginei que eles cortariam relações.

-O Paulo Francis já tinha feito isso com a Tônia Carrero; fez uma crítica tão violenta que levou porrada do marido dela, na época, o Adolfo Celi, e levou uma cusparada na cara do Paulo Autran.- lembrou.

-Pois é, o Rubem Braga, que deveria tomar as dores, se omitiu.  

-O Rubem Braga?!... Ah, sim! Mas ele era amante da Tônia Carrero naquele tempo?

-Sei lá, Claudio; mas se é para criticar, nós criticamos, mas sem a virulência do Paulo Francis. O problema, nesse caso, é que, em vez de se limitar a escrever sobre a Tônia Carrero como atriz, ele desgarrou para o lado pessoal. Anos depois, ele reviu a sua crítica e disse que estava doente quando escreveu aquilo.

-Já era tarde, Carlinhos.

-O Dieckmann me contou que, certa vez, o Paulo Francis se meteu a falar de carros clássicos e errou feio. O Dieckmann disse que enviou uma carta do leitor, ou algo parecido, com as devidas correções. Imaginou que o Paulo Francis replicaria com aquela violência que lhe era peculiar.

-E assim foi?- expressou curiosidade.

-Não; ele respondeu dentro dos padrões civilizados, segundo o Dieckmann.

-Deu sorte. Certa vez, ele colocou a Olivia de Havilland num filme em que ela não atuou, uma leitora do jornal corrigiu e o Paulo Francis escreveu que não é arquivista de cinema.

-Há pessoas que ficam, cheias de dedos quando me corrigem. Caramba, eu não gosto é que o erro prevaleça; fico danado comigo, apenas.

-Mas a maioria não pensa assim, se julga infalível.

-O Daniel e a Gina saíram para ver a exposição do Picasso no Centro Cultural do Banco do Brasil e eu falei no Steinberg.  Havia, no Pasquim, quem garantisse que Steinberg era melhor do que Picasso.

-Ninguém sabe quem é esse Steinberg.

-Saul Steinberg foi um cartunista e desenhista romeno que viveu nos Estados Unidos, onde desenhou nas publicações de grande tiragem e influenciou gerações de artistas. O Vagn foi um deles; creio que alguma coisa do traço do Millor Fernandes é do Saul Steinberg. Lembrei-me, agora, Claudio, houve um livro do Millor Fernandes que teve de ser recolhido porque um desenho de Steinberg foi atribuído a ele.

-Então, havia semelhanças. - concluiu meu irmão.

-Daquela turma do Pasquim, eu não tinha a menor dúvida que o Millor Fernandes era o número 1; além de possuir uma cultura que rivalizava com a do Paulo Francis, possuía uma criatividade muito maior, incomparável.

-Você falou nesse desenhista que se matou, Vagn; o nome verdadeiro dele não seria Vagner?

-Provavelmente.

O nome levou o meu irmão ao compositor alemão.

-O Paulo Francis ouvia as óperas de Wagner a todo o volume; os vizinhos batiam à porta para reclamar.

-Isso, quando ele morava num apartamento em Nova York?

-Sim, Carlinhos. Ele dizia que era impossível ouvir Wagner com o volume baixo; os vizinhos continuavam a reclamar e a mulher dele, a Sônia Nolasco, tinha de se virar com os descontentes.

-Com os anti-wagnerianos. O mundo musical foi dividido em wagnerianos e anti-wagnerianos, era como a esquerda e a direita na política, Porque Verdi não misturou as vozes de Otello e de Desdêmona, no dueto de amor, foi acusado, a palavra era esta, acusado, de wagneriano. A coisa era nesse nível.

-Mas mudou depois?

-Não completamente, Claudio. Uma vez o Sérgio Fortes levou o Fiani, que era professor da Fundação Getúlio Vargas, para comentar a ópera Pélleas et Mélisande,  de Debussy. Em determinado momento, o Fiani criticou o Wagner e o Sérgio Fortes lhe disse que os wagnerianos iam pegá-lo lá fora.

Após uma pausa, retomei o discurso.

-Há músicas que mesmo sendo ouvidas em volume baixo são barulhentas, isso acontece com a grande maioria que é composta hoje, Quanto a Wagner e outros compositores eruditos, o volume tem de ser alto porque as suas criações abrangem sonoridades em fortíssimo e em pianíssimo. Não há como desfrutar todas as notas com o som baixo.  

-Vá dizer isso para os vizinhos do Paulo Francis, Carlinhos.

-Você conheceu o Odilon, aquele que era advogado e trabalhou comigo?

-Conheci. - confirmou.

-Ele me disse que, certa vez, os vizinhos de um apartamento de Copacabana, onde morou, fizeram uma barulheira infernal. Ele se vingou com o “Bolero”, de Ravel.

-Com aquele tema repetitivo?

-O “Bolero”, de Ravel, é muito mais do que isso: além da riqueza orquestral, Ravel foi um dos maiores orquestradores de todos os tempos, a intensidade da música cresce a cada ciclo. Sabendo dessa intensidade crescente, o Odilon colocava o disco para tocar, no volume máximo e saía de casa.   

-Esperto o Odilon. – sorriu meu irmão.

-Começava baixinho e terminava ensurdecedor. Vinte minutos depois – disse-me o Odilon –  ele votava para o seu apartamento.

-Quando o “Bolero” já tinha acabado.

-Lembra-se de um Sabadoido, Claudio, em que o Vagner me perguntou qual a duração do “Bolero”, de Ravel?

-Lembro-me.

-Eu lhe respondi que depende do maestro; uns regem em 15 minutos, outros em 17, e por aí vai.

-Cada maestro um tem uma leitura.

-O Toscanini regeu o “Bolero” na presença do Ravel, que reclamou porque ele regia com muita rapidez. Toscanini, que além de genioso era opinioso, disse para Ravel que ele não entendia nada da música que havia composto.

-Muito folgado.

-Será que o Daniel e a Gina já estão vendo, agora, as pinturas de Picasso?

-Nada, Carlinhos; devem estar na fila com toda essa friagem.

 

 

 

 

 

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário