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sexta-feira, 18 de setembro de 2015

2940 - consolo didático


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5190                               Data:  15  de setembro de 2015

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NA  ACADEMIA DA TERCEIRA IDADE

 

Talvez seja o nome... Se, no cartaz da Praça Manet, estivesse escrito Academia da Segunda Idade, ou mesmo Primeira, os idosos apareceriam para se exercitar. Já escrevemos duas vezes, neste periódico, que a nossa companhia, naqueles aparelhos de ginástica, foram crianças que, confundindo as coisas, fazem da academia um play-ground, um local para brincar.

Mas a partir de duas semanas para cá, apareceu um idoso; ou melhor, uma idosa de uns 80 anos, um pouco gorda, de estatura mediana. Eram 5h 30min da manhã de um dia de trabalho, eu passei por lá, em direção ao metrô, quando notei essa senhora.  Ela usava um chapéu de abas largas com florezinhas, que despertaria atenção até no Jockey Clube em dia de Grande Prêmio Brasil; vestia uma blusa larga de cores espalhafatosas enfiada numa calça escura com as bainhas cobertas por um meião branco; e calçava tênis de cor de rosa. Como se fosse às compras, carregava uma bolsa de tira.

De onde ela saiu?... Talvez de um filme de Fellini, pois o cineasta italiano costumava deter a sua câmera nos tipos bizarros que encontrava espalhados pela Itália.

Imaginei que ela fosse dessas pessoas que são iguais a cometas; aparecem uma vez e só voltam a surgir muito tempo depois, mas não. No dia seguinte, quando fui para o trabalho, lá estava ela de novo. Ela se meteu no simulador de caminhada e movia cada perna vagarosamente.

No sábado, dia das minhas caminhadas madrugadoras, eu só pensava em não ficar encharcado com a chuva, por isso, depois de vestir bermuda, camisa e pôr o tênis, tratei de me cobrir com uma capa de plástico, com capuz, que chegava às minhas canelas.

O relógio digital marcava 5h 30 min da manhã, a hora insistente como “A las cinco de la tarde” do poema de Frederico Garcia-Lorca. Abri a porta do prédio e saí encapuzado, pois chovia mais do que eu imaginara dentro de casa.

Não havia, naquelas circunstâncias, melhor lugar para se exercitar do que a quadra de vôlei e basquete, que recebeu uma cobertura em setembro do ano passado, ou seja, um mês antes das eleições. Rumei para lá, protegendo a lente dos meus olhos dos pingos d' água com o capuz, e quem encontro?...  Depois de tantas palavras escritas, a minha pergunta só pode ser retórica. Além de ela estar com a vestimenta dos dias anteriores, trazia um guarda-chuva, agora fechado, mas que impediu de ela se molhar no trajeto até lá. Reconheci que eu, vestido como estava, naquela hora, no meio daquele toró, também parecia uma das figuras bizarras dos filmes de Fellini.

A senhora evitou qualquer contato visual comigo, por isso, eu nada lhe disse; meu bom-dia ficaria perdido no ar. A minha presença a melindrou, pois pegou a sua bolsa, que estava pendurada no portão entreaberto da quadra, o seu guarda-chuva comprido e se afastou. Foi sentar-se à mesa de alvenaria ao lado do quiosque “A Fofoca da Madrugada”, onde estava, também, abrigada da chuvarada.

Fechei, então, o portão da quadra para não ter de me desviar a cada giro que eu completasse da minha caminhada. E assim, os minutos se passaram sem que ela, em momento algum, atentasse para mim, apesar da proximidade. A sua preocupação eram os pingos d' água; em alguns momentos, se levantava, esticava o braço para fora do abrigo e voltava para o seu lugar. Quando deu uma estiagem, ela apanhou a sua bolsa, o seu guarda-chuva fechado e foi até a Academia da Terceira Idade. Lá, meteu-se no simulador de caminhada e exercitou as pernas muito lentamente. Voltou a chuva e ela se abrigou novamente no lugar de antes.

Eu caminhava sem maldizer aquela capa por dificultar os meus movimentos, pois ela mitigava a friagem mais do que as minhas passadas, que não eram tão impetuosas como nos velhos tempos. Para quebrar a monotonia, os meus giros eram ora destrógeros (para a direita), ora sinistrógeros (para a esquerda).

Faltando quase 10 minutos para eu chegar ao tempo que eu estabeleci para essa atividade a chuva estancou. A senhora retornou ao simulador de caminhada, onde simulava tanto que quase não movia as pernas. Não ficou três minutos e passou para um aparelho elaborado para fortalecer os músculos posteriores da coxa que mal se mexiam com ela sentada nele. A rigor, a sua ginástica foi sair de casa a pé até a Praça Manet e voltar.

Parei a minha caminhada e fui até aqueles aparelhos para exercitar um pouco os braços. Mal pisei o chão da Academia da Terceira Idade, ela pegou o guarda-chuva, sobraçou a bolsa e se afastou.

Será que eu, com essa capa de plástico branca e encapuzado, estou, assim, tão assustador?

Dois dias depois, fui, pouco depois das 4 da tarde, para a academia com a pretensão de brigar, por 30 minutos, com o tempo, que, sem cansar debilita os meus músculos. Ela não estava lá, é madrugadora; aliás, não havia ninguém lá, quando cheguei.

Uma voz vinda atrás de mim, precisamente dos bancos de alvenaria da pracinha me saudou; era o Orlando, o meu vizinho estressado. Respondi sem me virar, pois movimentava o meu corpo em um negócio que chamam de simulador de esqui. Passaram uns 10 minutos, quando dois garotos, de uns 12 anos de idade, vindos da Escola Manoel Bomfim, correram até o simulador de caminhada e o transformaram em balanço de parque de diversão, fazendo um vaivém com as duas pernas unidas. Nada que trouxesse danos, mas o Orlando, que descansava o seu corpo pesado, não pensou assim e reclamou. Um dos garotos, sem parar o que fazia, criticou o seu colega do lado, dizendo que era desatencioso com os mais velhos, que desobedecia até os pais. Orlando percebeu o deboche e gritou que, com ele, não havia essa história de dimenor; enfiava a mão na cara.

Os pestinhas se afastaram, mas sem demonstrar temor; viram que o meu vizinho estressado era muito gordo e capengava muito por causa de um joelho estropiado.

Logo os dois retornaram para brincarem com outros aparelhos. Orlando voltou à carga:

-Não sabem ler?

Um deles, o debochado, respondeu que sim.

-O que está escrito naquele cartaz?

-Não sei.

-Academia da Terceira Idade. Isto aqui é só para idosos, para quem está com mais de 65 anos.

-Quantos anos você tem?- indagou o outro garoto.

-65.

-Eu pensei que tivesse 100.

Orlando se levantou furioso, com a mão espalmada e foi em direção deles, que correram. Era como a corrida entre Aquiles e a tartaruga, e não havia paradoxo grego que desse alguma chance à tartaruga.

-Você viu, Carlos, como são esses, moleques?

-Console-se com as professoras, Orlando, que os aturam de segunda à sexta por 4 horas diárias.·.

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