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quarta-feira, 23 de setembro de 2015

2943 - desejos e repulsas


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5193                                   Data:  19  de setembro de 2015

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CONVERSAS NO METRÔ

 

A minha ida para o trabalho, nessa última sexta-feira, já foi complicada, começando no ônibus e terminando no táxi, a volta não seria também normal.

Na estação Carioca, o trem, com direção a Pavuna era daqueles que vieram da década de 80. Parece que guardam os trens chineses, cujos termostatos estão mais preservados para o verão que se se aproxima - pensei.

As portas do trem se abriram e eu entrei com uma leva de pessoas. Um cidadão, que descia o último lanço da escada correu, mas, sem a aceleração do Usain Bolt, não chegou a tempo; a porta se fechou com estrondo na sua cara, No entanto, o trem, em vez de seguir em frente, continuou parado e as luzes se apagaram. Em seguida, as portas reabriram. O retardatário aproveitou a oportunidade para sair, enquanto umas dez pessoas no vagão em que eu me encontrava retornaram para a plataforma. Em poucos minutos, várias pessoas se abanavam, algumas, dramaticamente.

O que houve?... Com a falta de notícias, que a direção do metrô teria a obrigação de dar aos usuários, muitos palpitaram. Os engraçadinhos não fugiram do clichê: “o pneu furou”. Finalmente, soou dos alto-falantes a informação que “estamos parados devido à sinalização à frente”.

Mais passageiros passaram para a plataforma, inclusive o retardatário. Então, a luz voltou ao trem e, com ela, os que haviam saído. As portas se fecharam e, dessa vez, o trem partiu.

-Estivemos parados devido à queda de luz na estação da Central. - ouvimos dos alto-falantes.

Estranho! Antes, era a sinalização, agora a queda de luz na Central... - dei tratos à bola.

Quando o trem parou nessa estação, houve o habitual fluxo e refluxo de passageiros, dessa vez mais intenso, às 4 horas da tarde, por causa do inesperado atraso. 

Duas senhoras que embarcaram ali, com frases truncadas falavam do que realmente atrapalhou o trânsito: uma tentativa de suicídio.

-Vou saltar porque não aguento esse calor; o ar aqui está desligado. – disse uma delas.

-Eu ainda vou até São Cristóvão. - disse a outra.

Quando ficou sem a sua interlocutora, tratei de puxar conversa com ela.

-Quando estávamos na Carioca, a informação que deram foi queda de luz na Central.

-Que nada! Um sujeito se jogou na linha férrea para ser esmigalhado por este trem.

-O metrô nunca fala em suicídio e já houve alguns. - disse-lhe.

-Quando ele pulou para a linha férrea, parou tudo. Vieram uns dez seguranças para tirá-lo de lá.

-Uns dez... – estranhei a quantidade.

-Que luta eles tiveram! A força do sujeito era descomunal.

-Pelo tempo que esperamos, imagino o trabalho que os seguranças tiveram.

-Quando ele já estava na plataforma e tudo parecia resolvido, ele correu para se atirar na outra linha férrea.

-A do trem sentido zona sul ou Tijuca?

Ela confirmou com a cabeça.

-Os seguranças do metrô têm de ter, entre seus equipamentos de resgate, camisa de força. – disse-lhe, mas ela mal me ouviu, pois correu para a porta que se abrira em São Cristóvão.

Mais um depressivo.

-Que calor! – grasnaram atrás de mim.

Sem se preocuparem com a deficiência do ar condicionado e menos ainda com a tentativa de suicídio, que ocorrera duas estações atrás, um casal que não aparentava mais de 40 anos de idade, conversava animadamente. Peguei a conversa no meio.

-A sua mulher já está na fase dos desejos?

-Já, infelizmente, está.

-E você está conseguindo cumprir a sua missão de marido?

-Por enquanto estou, mas não sei até onde vou aguentar.

-Tem de aguentar; é a sua obrigação. - disse ela com uma entonação sádica na voz.

-Para você ter uma ideia, ela, que não queria ver copo de leite na sua frente, que afirmava que sofria de intolerância à lactose, deu para beber leite. Eu até pensava que ela não fosse mamífera, agora, sei que é.

-Você, então, teve de ir ao supermercado para comprar as caixas de leite para ela.

-Quanto a isso, não houve problema, porque tenho o meu estoque, só que, agora, são dois a consumirem. Trabalho eu tive quando ela cismou em comer gomos de jaca.

A moça riu.

-Ela me dizia que o cheiro da jaca já lhe embrulhava o estômago, dando-lhe ânsia de vômito; engravidou e quer comer jaca. Se nós morássemos numa casa, eu não duvido que me obrigaria a plantar uma jaqueira no quintal.

-Mas depois de o bebê nascer, ela mandaria você arrancar com raiz e tudo.

-Esse desejo da jaca passou, o do leite também, mas não sosseguei ainda dos desejos que ainda virão. Também há coisas de que ela gostava e que, agora, tem repulsa.

-Eu, quando engravidei, tomei aversão pelo meu marido.

-A minha mulher não entrou nessa fase.

-O barulho dos passos dele pela casa me irritava, a voz, então... Coitadinho, sofreu nas minhas mãos.

Infelizmente, o destino da grávida irritadiça com o marido era a estação do Maracanã e o diálogo foi interrompido.

Mas aquela viagem era mesmo inusitada, pois nem todos estavam fixados nos seus celulares e smartphones; passageiros conversavam e eu direcionei os meus ouvidos para dois senhores que trocavam ideias.

-Por que você não vai para o Shopping Nova América e, de lá, pega uma condução para casa?

-Não. Não, vai atrasar a minha vida. Eu tenho de encarar mesmo aquele corredor e pegar a Avenida Suburbana.

-Eu soube que tem havido muitos assaltos por lá.

-Para lhe ser sincero, nunca vi ninguém ser assaltado por lá. O horror são aqueles pedintes de esmola, eles grudam em você como visgo e, enquanto não receberem, pelo menos dois reais, não desgrudam. Já andei mais de cem metros com um pendurado em mim. Querem dinheiro para se matarem com o craque. É a miséria.

-A miséria, a pobreza; tudo a mesma coisa. - acrescentou o outro.

Saltei em Maria da Graça, enquanto eles prosseguiam naquele trem, pensando no que os dois disseram. Li “Crime e Castigo”, de Dostoiévski uns trinta anos atrás, mas atualmente releio e estava bem viva na minha memória as palavras do miserável Marmieládov, viciado em álcool, para Raskólnikov, quando se encontraram numa taverna: “Na pobreza, o senhor ainda preserva a nobreza dos sentimentos inatos, mas, na miséria, ninguém nunca o consegue.”

Não é a mesma coisa, aqueles pedintes não pobres, são miseráveis.

 

  

 

 

 

 

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