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terça-feira, 15 de setembro de 2015

2937 - as loucuras de um biscoito real


 

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5187                                  Data:  12  de setembro de 2015

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123ª VISITA À MINHA CASA

 

-Maria I, a !... – por pouco não disse “Louca”, freei minha língua a tempo.

-De novo no Brasil.- disse sem entusiasmo algum.

-Quem não gostou muito de vir para cá foi a sua nora.

-A Carlota Joaquina?!... Por questões políticas, tive de aceitar seu casamento com o meu filho João. Eu não gostava daquela espanhola, que deveria ser temente a Deus.

-Aqui, um prefeito doi... de novo não falei o adjetivo, para não melindrá-la e voltei ao início:

-Aqui, um prefeito deu o nome dela a um túnel. Se era para homenagear uma rainha, por que não a senhora?

-Esqueceram que, antes de ser rainha, eu ostentava o título de Princesa do Brasil.

-A senhora foi a única rainha de Portugal que empunhou o cetro e governou por si própria.

-No meu país, não havia esse código inventado pelos franceses, a Lei Sálica, que impedia uma mulher de governar.

-O meu pai não teve um só filho homem; assim, vendo que eu o sucederia, pensou em um marido português para mim e escolheu seu irmão, dom Pedro.

-Você se casou com seu tio?... – não contive o meu estranhamento.

-Eu e o Príncipe Dom Pedro nos demos muito bem. Foram três os nossos filhos: José, o meu preferido, que morreu desgraçadamente; João, que vocês brasileiros também conhecem muito, e Mariana Vitória, que viria a se casar com o infante de Espanha, Dom Gabriel.

Com o seu pai, Dom José I, como rei, o Marquês de Pombal foi uma espécie de Cardeal Richelieu, de França: possuía um poder incomensurável.

-Eu e o meu marido o odiávamos. Como poderíamos gostar de uma criatura que lia Voltaire, Jean-Jacques Rousseau, Diderot, esses hereges todos? Mas meu querido pai não enxergava a maldade deste mundo.

-Tanto você como o príncipe Dom Pedro...

-Também príncipe do Brasil. – fez questão de ressaltar.

-Sim, vocês dois, os príncipes do Brasil, não engoliam o Marquês de Pombal. E ele percebia isso.

-Evidentemente que sim; o diabo o alertava de tudo. Ele, sabendo que, morrendo meu pai e eu subindo ao trono, acabaria com a influência do demônio em Portugal, tentou introduzir a Lei Sálica para que o neto do rei o sucedesse como Dom José II, colocando-me fora da sucessão.

-O seu filho primogênito, que morreu ainda novo?

Confirmou com um balançar brusco de cabeça.

-Sabendo dessa intenção, o Marquês de Pombal caiu em desgraça com a senhora.

-Não foi só isso; ele perseguiu os jesuítas...

-Sim; expulsou-os do Brasil.

-Não me interrompa. - mostrou o seu mau gênio.

Ouvi como um obediente súdito e ela prosseguiu:

-Ele foi um diabólico adversário da cúria romana, reformador dos conventos. Foi uma peste que provocou a ira de Deus e nos trouxe o terrível terremoto de Lisboa.

-O terremoto foi tão devastador que seu pai escreveu para a irmã, Bárbara de Bragança, que era um rei sem reino num país sem capital.

-Castigo dos céus! – bradou.

-Enquanto isso, o Marquês de Pombal dizia: “Sepultemos os mortos e cuidemos dos vivos.

-Frase típica de um herege, que falou como se tudo acabasse com a morte. Temos, sim, de cuidar também dos mortos.

-Dom José I faleceu em 1777 e a senhora o sucedeu. Acabava, assim, o poder do Marquês de Pombal.

-Ele não esperou mais do que uma semana para deixar de ser ministro e receber ordens para recolher-se à sua casa de Pombal.

-Voltou ao pombal. - não resisti à piada que a rainha, como o seu mau humor encruado, não percebeu.

-Devolvi, em seguida, a liberdade aos seus opositores, por ele encarcerados.

Certamente, o revanchismo não parou por aí. - pensei sem me manifestar.

-Parentes e amigos do Marquês tiveram de se explicar, de provar que não traziam o satanismo do mentor. O seu medalhão do monumento do Terreiro do Paço foi arrancado por ordem minha.

-Não pararam por aí.

-Ele teve de responder a um processo e dois desembargadores o submetiam a interrogatórios sem tréguas.

-Mas o Marquês de Pombal, um estadista, já era um senhor combalido. - penalizei-me.

-Ele quebrou Portugal por três vezes.

No momento, não entendi nada; a compreensão viria depois.

 -Frei Inácio de São Caetano, grande teólogo, arcebispo de Tessalónica, meu confessor, me convenceu que o Marquês de Pombal já pagara por seus pecados. O procurador da coroa, Pereira Ramos, afirmava o mesmo, mas muitas pessoas, chegadas a mim, diziam que não, que o Marquês ainda tinha muito a purgar. Eu fiquei indecisa, mas segui o pedido do Frei Inácio, embora não estivesse convencida. Eu sentia, ainda, que não levava até o fim a justiça de Deus contra ele.

-Mas a senhora mesmo disse que o seu confessor era um grande teólogo.

-Sim; mas eu não estava convencida. Se eu não o torturasse como a justiça divina exigia, eu não me perdoaria.

-Dona Maria I, apesar de eu não ter estudado muito a História de Portugal, sei que os dois, Pereira Ramos e o Arcebispo lhe deram bons conselhos para gerir bem o seu reino. Assim, viagens e explorações científicas às colônias foram bem sucedidas, que trabalhos geodésicos foram realizados, que a esquadra da Marinha Portuguesa se desenvolveu notavelmente.

-Para mim, o mais importante foi edificar a basílica do Coração de Jesus, que doei às freiras carmelitas e de ter fundado a Igreja da Memória, na Ajuda, onde os Távora atentaram contra a vida do meu pai no ano do terremoto de Lisboa.

-Os céus se acalmaram. - disse com o pensamento nas tragédias da natureza de que Portugal se livrara, mas ela não entendeu assim.

-Meu confessor morreu, pouco depois, a minha mãe Dona Mariana Vitória, depois, o meu querido marido Dom Pedro. O meu primogênito sofreu um ataque de bexigas, rezei diuturnamente, ele escapou da terrível doença, mas cinco anos depois, meu amado filho morria. O meu coração não aguentava tanto sofrimento.

 -E o seu novo confessor?

-O bispo de Algarves?... Ele não tranquilizava a minha alma como o bispo de Tessalónica, pelo contrário, sempre que ele me falava, eu me sentia ainda pior, mais atormentada. Ele queria que eu reabilitasse os Távora, a família que atentou contra a vida do rei, do meu pai. Eu não poderia fazer isso.

Depois de uma pausa, quando respirou fundo, prosseguiu:

Uma vez, pedi que levassem até as crianças, elas me acalmariam, pois é delas o reino dos céus como diz os evangelhos. Juntaram algumas delas e eu falei para que me ouvissem.

-Desculpe-me a curiosidade; o que disse para elas?

-O Dia das crianças é o dia da mãe, do pai e das professoras, mas também é o dia dos animais. Sempre que você olha uma criança, há sempre uma figura oculta, que é um cachorro atrás, que é algo muito importante.

-O contato com a meninada a acalmou?

-Nada; eu era importunada pelos lusitanos que citavam “Os Lusíadas” e me pediam para levar Portugal à época da prosperidade das grandes navegações.

-O que a senhora lhes disse:

-Não vamos colocar meta. Vamos deixar a meta aberta, mas, quando atingirmos a meta, vamos dobrar a meta.

-Entendo. - disse-lhe.

-Uma vez, saindo do teatro, senti-me mal; os médicos fizeram sangria. Escreveram para Londres pedindo os serviços do Dr. Willis, o médico que curou a loucura do Rei George III, da Inglaterra. Ele pediu uma fortuna para ser o meu médico, isso não seria problema: bastava-me aumentar os impostos. Que tratasse das minhas constipações, porque doida eu não estava.

-Certamente que não, rainha.

-Louca eu fiquei quando me obrigaram a entrar num navio e vir para o Brasil, porque um sujeito ateu da França ateia, de nome Napoleão Bonaparte, invadiu Portugal.

-E do que a senhora se recorda da sua estada no Brasil, rainha?

-De poucas coisas. Lembro que eu sempre saía à rua acompanhada de muitas aias, e o populacho nos apontavam dizendo: “Maria vai com as outras”.

-Recorda-se do nome de algumas dessas outras?

-Ideli, Gleisi, Jandira, Maria do Rosário...

Nesse instante, soaram as badaladas do relógio e Maria I, a Louca, partiu repentinamente.

 

 

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