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segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

2281 - vacine-se, ou, Elio, o agricultor

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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4081                               Data: 06 de dezembro de 2012
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A REVOLTA  DA  VACINA

Quando vi milhares de estudantes furibundos gritando contra o governo, reagi com perplexidade.
-Elio, o Lula não comprou a UNE?... Será que ele atrasou o pagamento deste mês.
-Carlos, preste mais atenção. Muitos portam chapéus e bengalas.
E estendeu o braço entregando-me um exemplar do Correio da Manhã.
-Olhe a data de hoje.
Li que era o dia 10 de novembro de 1904.
-Isso significa que começou a Revolta da Vacina?... - estremeci.
-As instituições vão tremer, Carlos. Minha mãe, Dona Sarita, me ensinou, com muita insistência, essa matéria da História do Brasil.
-Não entendo o nosso povo, Elio. O presidente Rodrigues Alves escolheu um ministério que nunca houve igual, em competência, na política brasileira. Herdou as finanças do país, equilibradas pelo Joaquim Murtinho no governo Campos Sales e pôde realizar obras de valor inestimável para o país.
-Sim, Carlos, ele pôs abaixo cortiços, pardieiros, cafofos, cabeças de porco, lugares onde grassavam a febre amarela e a peste bubônica, rasgando grandes avenidas pela cidade do Rio de Janeiro, isso depois de ter realizado um bom governo em São Paulo.
Quando pretendia palestrar sobre o maior de todos os cortiços, o Cabeça de Porco, posto abaixo poucos anos atrás, eu o interrompi:
-Sei que o prefeito Pereira Passos, nomeado pelo presidente, fundou a Avenida Central, depois, Avenida Rio Branco.
-Não foi só isso, Carlos, Pereira Passos remodelou a cidade; a Avenida Passos foi inaugurada por ele, ano passado. Ele abriu outras avenidas: Mem de Sá (*), Salvador de Sá, Gomes Freire, Beira-Mar, Atlântica. Ele alargou as ruas: Treze de Maio, Carioca, Assembleia, Sete de Setembro, Marechal Floriano, Visconde de Inhaúma, Acre, Visconde de Rio Branco, Frei Caneca, Camerino, Catete, Laranjeiras. Além do Bulevar Vinte e Oito de Setembro, Pereira Passos construiu ou reconstruiu o cais Pharoux, os largos da Gloria, Rossio, do Machado, de São Domingos, do Paço e melhorou o Campo de São Cristóvão. Também derrubou os Morros do Castelo (**) e do Senado para abrir novas vias de comunicação e acabar com os miasmas pestilentos.
-Percebo que Dona Sarita lhe exigiu muito para você decorar tudo isso. - comentei de um jeito meio travesso.
-Levei muitas chineladas, mas aprendi.
-O povo carioca deveria agradecer as realizações deste governo.
-Há muitas exceções: os mais pobres não se conformam com a maneira com que foram desalojados dos pardieiros em que viviam para que ruas e avenidas surgissem.
-Mas aquilo era o ambiente ideal para que as piores pestes grassassem pela cidade. Eu soube, Elio, que o próprio presidente Rodrigues Alves prometeu a si próprio erradicar as doenças transmissíveis do Rio Janeiro, depois que perdeu uma filha de cinco anos com febre amarela.
-E não é só a patuleia que reclama, Ruy Barbosa proferiu um discurso arrasando com o prefeito Pereira Passos. Eis um trecho que ainda guardo na memória, pois ela não é seletiva: “... senhor absoluto desta capital, um ditador insuportável, poderá criar para todos os seus habitantes uma situação intolerável de opressão e de vexame.”
-Se Ruy Barbosa falou isso do prefeito Pereira Passos, imagino o que disse sobre o sanitarista Oswaldo Cruz. - comentei.
Oswaldo Cruz havia convencido o Congresso a aprovar a Lei da Vacina Obrigatória, em 31 de outubro de 1904, para erradicar a varíola do Brasil. Baseadas nela, as brigadas sanitárias, acompanhadas por policiais, podiam entrar nas casas e aplicar a vacina à força.
Eu e Elio assistimos às manifestações estudantis, em reação a essa medida, mas não eram apenas eles que protestavam pelas ruas.
-Eu não permitirei que policiais e mata-mosquitos tarados toquem nas partes íntimas da minha mulher e filhas. - clamou furibundo um senhor, brandindo uma bengala.
-Vou dizer a ele que a vacina é no braço.
-Não adianta, todas as pessoas em volta dele o apoiam e você será visto como um inimigo.- aconselhou-me o Elio.
Poucos dias antes, ou seja, 5 do novembro, foi criada a Liga contra a Vacina Obrigatória.
-Carlos, com a criação dessa Liga, os ânimos se acirraram ainda mais.
-Vamos, então, dar o fora.
-Carlos, jogaram-me para estudar páginas e mais páginas sobre essa matéria, agora eu quero ver tudo na prática. Vamos ficar.
Não transcorreu muito tempo e a cidade virou um campo de batalha; lojas foram depredadas, bondes virados e incendiados, postes foram entortados.
-Olha, Carlos, levantam barricadas.
-Quiseram tanto transformar o Rio de Janeiro em Paris, que já temos barricadas como nas revoltas que houve por lá no século passado. - comentei.
-Eles enfrentam a polícia com barras de ferro, paus e pedras. É um perigo quando as autoridades são desrespeitadas dessa maneira. - manifestou-se o Elio.
-E todo esse vandalismo por causa de uma espetadela no braço que evita a horrível doença que é a varíola.
-Mas o povo não entende assim. Para os populares, as pudendas das suas filhas e esposas serão tocadas, que todos contrairão a doença com as agulhadas dos mata-mosquitos, enfim, eles desconhecem os benefícios da vacina.
-Deus do céu, Elio, há muitos e muitos anos atrás, a Catarina da Rússia se submeteu à vacina para demonstrar ao povo russo que não havia perigo algum.
-É o que falta ao governo do Rodrigues Alves: um canal de comunicação com o povo para prestar maiores esclarecimentos.
-Elio, a televisão só surgirá daqui a uns cinquenta anos.
-Não é hora para brincadeiras. - repreendeu-me.
Tudo começou no dia 10 de novembro, e, nos dias subsequentes, a revolta recrudesceu.  Em 14 de novembro, um grito de euforia sacudiu os revoltosos: os cadetes da Escola Militar da Praia Vermelha se sublevaram contra as medidas baixadas pelo Governo Federal.
-Elio, eles têm esperança que, agora, um golpe seja dado e derrube o presidente Rodrigues Alves.
As notícias que chegavam eram arrepiantes; o General Travassos, pró-revoltosos, prendeu o General Costallat e se juntou aos cadetes para irem às ruas.
Rodrigues Alves mobilizou, então, recursos em Terra e Mar, incluindo a brigada policial e o Corpo de Bombeiros. As armas foram desensarilhadas. O Palácio do Catete se transformaria numa praça de guerra; eu e Elio corremos para lá, atrás dos civis que foram se unir aos militares rebelados.
-Elio, há umas vinte mil pessoas aqui em pé de guerra.
-O Presidente da República já alojou seus familiares num lugar seguro. - disse-me.
No primeiro confronto, a tropa legalista debandou, mas logo mais tropas leais ao governo chegaram. Vieram o 1º RC, o 24ª e o 38 BIs, duas baterias do 2º RAC e as forças navais do Corpo de Marinheiros e da Infantaria da Marinha, sob o comando do coronel Caetano de Faria. Fizeram-se também presente o ministro da Guerra, o Marechal Argolo, fardado e o Ministro da Viação, o General Lauro Müller, também fardado e a cavalo.
Os disparos eram incessantes, eu e o Elio tratamos de nos abrigar atrás de uma barricada que deixaram para trás. Em mais um confronto, o líder dos revoltosos, o General Travassos, é ferido e carregado para longe da área conflagrada. O General Lauro Sodré também foi ferido, mas sobreviveria, o que não aconteceu com o seu adversário.
O levante foi dominado pelos legalistas, com mais de 30 mortos e centenas de feridos, e a Escola da Praia Vermelha foi retomada. Foi instaurado um inquérito que apurou que o movimento era de âmbito nacional, estendendo-se pela Bahia e Pernambuco. O governo recorreu ao Estado de Sítio e impôs a censura à imprensa, fechando o Correio da Manhã; e expulsou mais de 300 alunos da Escola Militar da Praia Vermelha, que foi fechada. O governo também prendeu centenas de pessoas e deportou outras tantas para o Acre, entre eles eu e o Elio, que fomos surpreendidos por soldados mal encarados. Não adiantou nós mostramos a marca da vacina contra a varíola no braço.
-Com essa história de assistir a Revolta da Vacina, acabamos no Acre. - reclamei. (***)
-Pense em coisas boas, Carlos, a terra de lá é ótima para se plantar.

(*) O Departamento de Pesquisas do seu O BISCOITO MOLHADO, consciente do seu dever cívico e no interesse da preservação da memória da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, quente, úmida e barulhenta, porém incomparável, traz para o prezado assinante uma confirmação interessante. Sobre um mapa de 1886, compreendendo a região do Centro da Cidade, desde a Glória ao Campo de Santana, então Jardim da Praça da Aclimação, é possível perceber que as Avenidas Gomes Freire (1), Mem de Sá (2) e as ruas Henrique Valadares (3) até a Rua da Relação, Ubaldino do Amaral, Carlos Sampaio e Carlos de Carvalho não existiam em 1886 e estão apostas no mapa que anexamos aqui. Os nomes das novas ruas não estão lançados para não poluir o mapa, mas se alguém tiver alguma dúvida, ou uma boa contribuição a respeito, pede-se enviar mensagem de volta, ou comentário no blog obiscoitomolhado.blogspot.com.br
 O MAPA NÃO PODE SER CARREGADO NO BLOG. 
QUEM DESEJAR CONHECER, enviar mensagem para dieckmann@globo.com

(**) Iniciou o desmonte do Morro do Castelo. O fim deste desmonte ficou para 1952, como pode ser visto no filme RIO SEM CASTELO.

(***) Obviamente, os viajantes visitaram o Acre apenas um ano e pouco após a sua incorporação ao Brasil (em 17 de junho de 1903, era assinado o Tratado de Petrópolis, pelo qual se consagrou a união do Território do Acre ao Brasil) e nos relatarão em próximos episódios como era elástica a vida no Território do Látex, ou do Acre.

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