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quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

2271 - a nau da Carlota 3


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4072                                 Data: 25 de novembro de 2012
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COM A  TUMULTUADA  CORTE  PORTUGUESA
PARTE III

-Que dia é hoje, Elio?
-Vou perguntar ao funcionário encarregado do calendário do príncipe-regente.
Em pouco tempo, ele retornou com a resposta.
-21 de janeiro de 1808.
-Há três dias que avistamos a Bahia, mas não vemos baianos, nem eles nos veem.
No dia seguinte, todos os navios que partiram da sobressaltada Lisboa já estavam fundeados.
-Uma embarcação vem do porto de Salvador até nós. - apontou o Elio.
Ela conduzia o Conde da Ponte, governador da capitania da Bahia, que subiria a bordo do navio Príncipe-Regente para se entrevistar com Dom João.
O que falaram? Não soubemos e ficamos no mesmo lugar. No dia que se seguiu, foi a vez dos membros da câmara da capitania imitarem o gesto do governador.
-Elio, com esse protocolo todo, só pisaremos as terras baianas daqui a um ano.
Vimos do navio mais uma lua no céu, mais uma alvorada, mas antes do pôr do sol, nosso navio finalmente foi preparado para o desembarque.
Com a saída da comitiva real da nau Príncipe-Regente, os plebeus deliraram de alegria. Muitas autoridades brasileiras escorregaram com os rapapés exagerados; porém, a carranca da Dona Carlota Joaquina no navio não se desfez em terra firme.
-Negros!  Só vejo negros! Cheguei à América portuguesa ou à África?... E como fede esta terra!
Muitas pessoas preferiram continuar alojadas nas embarcações, os mais abastados consideraram melhor se abrigar nos casarões mais imponentes dos colonos brasileiros.
Elio, que cobiçava a comida baiana, como um bom glutão, aproximou-se do Príncipe-Regente e demais fidalgos, e eu o acompanhei.
Como os baianos sempre admiraram as pessoas que falam palavras incompreensíveis, ele falou inglês, hebraico e iídiche, foi tomado por um nobre, e conseguiu para ele e para mim dois quartos num palacete de Salvador.
O tempo transcorria, e Dom João se portava como se estivesse na corte lisboeta: recebia conselheiros, sabujos e assinava papéis.
-Carlos, quem é aquele brasileiro que tanto fala com o príncipe-regente?
-É o Visconde de Cairu, o maior conhecedor vivo de economia do Brasil. Fiz o ginásio num colégio que levava o seu nome, no Méier, excelente, na minha época.
-Então, ele sugere que Dom João abra os portos às nações amigas.- concluiu o Elio.
De fato, ainda em Salvador, foi assinado o Decreto de Abertura dos Portos às Nações Amigas. Era o primeiro benefício que Napoleão Bonaparte, por caminhos transversos, proporcionava ao Brasil.
Mas o destino da Família Real e dos seus acompanhantes de viagem não era Salvador e sim o Rio de Janeiro. Assim, poucos dias depois do desembarque, naus, fragatas, brigues e escunas voltaram a singrar o Oceano Atlântico.
-Chegamos no dia 8 de março de 1808, e logo pisávamos o chão do Largo do Paço.
Os vassalos da colônia, com o mesmo entusiasmo dos baianos, fizeram uma ruidosa festa. Carlota Joaquina, antes de reclamar do barulho, vituperou contra os naturais da terra.
-Negros como na Bahia!... 
Três prédios foram requisitados para a Família Real.
-Eu queria ir já para a Quinta da Boa Vista, respirar o verde das plantas depois de ver tanto azul do mar.- confessei.
-Carlos, a Família Real irá mais tarde para a Quinta da Boa Vista, quando o negociante atacadista Elias Antônio Lopes doar a sua propriedade para Dom João.
-Dona Sarita, sua mãe, lhe ensinou bem essa matéria. - manifestei-me zombeteiramente.
A tranquilidade dos cariocas esboroou quando foi tomada de assalto por aqueles 15 mil portugueses que evitaram as tropas napoleônicas. As melhores casas eram pintadas com duas letras fatídicas P.R. e seus moradores eram despejados para que os visitantes de Portugal as ocupassem.
-Elio, é a pior forma de denúncia vazia que eu já vi.
-O que significa esse P.R. na porta da minha casa?- reclamou um senhor obeso como um frade com o pichador.
-Príncipe-Regente. Você tem de sair para um fidalgo português ocupá-la.
-Então, é Ponha-se na Rua. Sem os meus porcos e as minhas galinhas, eu não saio.
-Leve, então, os seus porcos e as suas galinhas.
-Para onde?- quis saber o sem-teto.
-E eu que vou saber?... - devolveu o pichador.
Outros, mais indignados, mas falando em voz baixa, diziam que P.R. significava Prédio Roubado.
-Mais tarde, Carlota Joaquina se apossará de uma chácara cujo proprietário foi denunciado por prática do culto judaico, como se não bastassem os imóveis que ela já tem. - soprou-me o Elio nos ouvidos.
Foi anunciado com pompas de feito militar digno de César, que o Brasil invadiu a Guiana Francesa.
-Que vingança contra Napoleão mais chinfrim. - comentei.
-Fala baixo, Carlos.- advertiu-me o Elio.
Nesse mesmo ano de 1808, o Príncipe-Regente fundou o Banco do Brasil.
-Vai comprar as ações, Carlos?- gracejou o Elio.
-Só quando vier a baixa dos preços depois da volta de Dom João VI para Portugal. - devolvi o gracejo.
Nesse ínterim, avistamos Dona Maria, a Louca, caminhando até um chafariz, enquanto uma fila indiana de servas a seguia. Elio olhou para a cena e disse:
-É a Maria vai com as outras.
Dom João também criou a Imprensa Régia; porém, o primeiro jornal editado que nos chegava às mãos nos decepcionou.
-Veja, Carlos: tem três ou quatro páginas, como o Biscoito Molhado, mas só enaltece os feitos de Dom João, como se ele fosse um dos “barões assinalados” dos Lusíadas de Camões.
-Em Londres, Hipólito da Costa edita o Correio Braziliense, o primeiro jornal do Brasil, que espelha com mais fidelidade a situação deste país. - disse-lhe.
Num gesto merecedor de aplausos, ainda em 1808, o Príncipe-Regente suspendeu o alvará de 1785, que proibia a criação de indústrias no Brasil, autorizando, consequentemente, a atividade industrial na colônia. Os ingleses reclamaram, apesar de colocar no Brasil artigos mais elaborados e a preços mais acessíveis. Assim, foi assinado, em 1810, o Tratado de Aliança e Amizade e o Tratado de Comércio e Navegação, em que o governo português concedia aos produtos ingleses uma tarifa preferencial de 15% e aos artigos das outras nações, 24%.
-Elio, o Brasil é colônia de Portugal e Portugal, por sua vez, é colônia da Inglaterra. - concluí.
Parei de falar quando vi o menino Dom Pedro de Alcântara brincando com as meninas escravas, algumas delas taludas. Elio também observava a mesma cena e comentou:
-Ele só quer brincar de médico.
-Ele dará, daqui a poucos anos, uma grande contribuição à miscigenação no Brasil.- acrescentou.
Saímos dali para assistir ao primeiro banho que Dom João tomava na vida. Tudo por causa de um furúnculo. Foi transportado para a Praia do Caju e, dentro de um barril, foi banhado pelos súditos que o acompanharam.
Acompanhávamos tudo com os olhos, enquanto as palavras saíam das nossas bocas.
-Ele nos deu ainda a Academia Real Militar, a Biblioteca Real, o Museu Real, que depois seria o Museu Nacional, a Fábrica de Pólvora para a defesa da terra. E mais: criou o Jardim Botânico, quando ninguém pensava em ecologia.
-E o seu neto, Dom Pedro II, criará a Floresta da Tijuca. - acrescentei.
Enveredamos, depois, pelas consequências internacionais daquela saída de Lisboa, em 1807, antes da chegada das tropas do General Junot e concluímos que Dom João passara a perna em Napoleão Bonaparte.




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