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terça-feira, 18 de dezembro de 2012

2282 - Pitulito que bate, bate

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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4083                               Data: 08 de dezembro de 2012
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DOUTOR  PIRULITO

Quando o Pirulito integrou a turma da Chaves Pinheiro era estudante de medicina e morava na rua Estevão Silva, que era paralela à nossa rua.
No campo do Cachambi, onde ocorriam peladas a miúdo (não se trata de trocadilho com um dos peladeiros apelidado de Miúdo), convergiam os moradores de todas as ruas do Cachambi. Lá, constatei que a turma da Estevão Silva não sustentava cinco minutos de conversa sobre cultura geral. Só sabia falar de futebol, nada mais do que futebol.
Pirulito lia bastante romances, se considerarmos o tempo que tinha de dedicar ao estudo de Medicina na Nacional, acompanhava a música popular, a política. E frequentava os cinemas, sem afetação intelectual.
-Claudio, não estou entendendo nada deste filme (2001 Odisseia no Espaço), mas o colorido é uma beleza.
Não encontrou com essa bagagem interlocutores na Estevão Silva e, por essa razão, se enturmou na Chaves Pinheiro, onde só não encontraria entendidos na carreira que seguia. Certa vez, Augustinho, cujos pais se enraizaram nessa rua, o abordou:
-Que diabo de estudante de Medicina é você que nunca fala de assuntos médicos?
-Se eu falar, você não vai entender porra nenhuma.
Eu e Lopo, meu irmão mais novo, explodimos numa gargalhada. Aliás, a sua presença significava o que Eça de Queirós pregava nas últimas páginas de Os Maias: risos generosos de estremecer as ilhargas; normalmente o Pirulito, gozador nato, era quem mais despregava as bandeiras do riso.
Certa vez, perguntei-lhe particularmente: “Você não fica chateado que lhe chamem de Pirulito? Posso tratá-lo de Carlos.
-Continue com o Pirulito. - deu o sinal verde, talvez porque eu destoasse, chamando-o de Carlos, com o clima de folia que ele implantava.
Outra pergunta, ou melhor, comentário, que lhe fiz:
-Quando estou sentado, de noite, no murinho da Avenida Suburbana, próximo à Chaves Pinheiro, há sempre um senhor que vem da Estevão Silva, que eu não conheço, que me cumprimenta.
-É o meu pai; ele é maluco.
Pirulito estudou o primário, na Escola 9-10 Manoel Bomfim, e ficou longe do irmão mais velho, Arnaldo, que passava por nós vergado com o peso das incontáveis medalhas de ouro que as notas 100 que tirava nas provas. Hoje, é passarinheiro. A irmã Tânia, como o Pirulito, também não chamou a atenção dos transeuntes com o uniforme da escola, mas hoje, é juíza.
Pirulito cursou o ginásio no Visconde de Cairu, mas eu não o conheci lá, porque era de uma turma um ano mais velha.
Conheci-o mesmo na Rua Chaves Pinheiro no início dos anos 70, e que zombeteiro.
Na política, nós nos dizíamos da esquerda, a doença infantil, segundo Roberto Campos, que, como ao sarampo e a catapora, manifesta-se em todos. A catapora ou sarampo, no Pirulito, era quase imperceptível, naquela época de ditadura militar. Isso o deixava à vontade para achincalhar as posições políticas extremadas do pessoal.
E os debates consistiam, basicamente, num amálgama de música popular brasileira com a política. Um gritava que Chico Buarque era o maior contestador do regime militar, outro, vociferava que não, que Gonzaguinha o superava nas críticas, um terceiro trovejava que Sérgio Ricardo, com o LP Calabouço, atingiu a um patamar de contestação inalcançável na música popular brasileiro.
Diante de tanto passionalismo, Pirulito chalaceava até não poder mais, sempre às gargalhadas. Denominava, por exemplo, Chico Buarque de “meninão”, um compositor que as mulheres que marcharam com Deus pela Liberdade, em 1964, queriam para genro, e por aí vai.
Grassava também, entre nós, um horrendo patrulhamento ideológico, e Pelé era a nossa maior vítima, apesar de nós delirarmos de alegria com as suas jogadas na Copa do Mundo de 1970. Embora fosse unha de fome, Pirulito comprou um disco de músicas “cantadas” pelo Pelé e o presenteou ao seu maior crítico, no meio de uma zombaria total.
Uma vez, eu lhe disse que via a “Grande Chance”, programa televisivo do Flávio Cavalcanti, mas que era ruim. Como eu assistia a uma coisa que não gostava, ele concluiu que eu era um idiota. Apesar de a palavra ser forte, eu não percebia nenhum laivo de ofensa, quando dita pelo Pirulito, por isso, nunca me alterei com ele. Fisicamente falando, Pirulito era inofensivo como um placebo, pinçando essa comparação de uma carta da Rosa Grieco. Mas a minha reação não era seguida por todos, como veremos a seguir.
Pirulito não jogava bola, o que não o impedia de ir ao Lar de Júlia assistir às nossas partidas de futebol de salão. Num determinado domingo, Mazola, um dos mais consagrados pernas de pau da Rua Estevão Silva, apareceu para jogar. Pirulito, entre os espectadores, fez a festa.
O jogo transcorria, e não havia meio de o Mazola conseguir tocar com o pé na bola. A galhofa do Pirulito começou:
-Mazola é como o Tostão na Copa de 70, joga sem a bola.
Vagner, ao lado do Pirulito, o acompanhou na gozação. Em determinado momento, Mazola perdeu as estribeiras e ameaçou fazer os dois engolirem o seu tênis. Pirulito só visava a brincadeira e, por isso, se recolhia quando o clima ficava pesado, mas Vagner, possuidor de pavio curto, aceitava a briga, creio que foi acalmado pelo próprio Pirulito e pelos amigos que estavam nas proximidades.
O doutor Pirulito era inseguro, Comprou, de segunda mão, o seu primeiro carro, um fusquinha, depois de tirar, com muita dificuldade, a carteira de motorista.  Quando pretendeu dar esse fusca, para adquirir outro carro, carregou o Luca, eu e o Lopo a uma concessionária. É verdade que o Luca possuía uma boa experiência com carros e devia ser consultado, mas sempre que tinha de tomar uma decisão, ele sempre se sentia protegido com amigos ao seu lado. Certa vez, já de noite, bateu na minha porta para acompanhá-lo até uma oficina de veículos que lhe fora indicada e ele não conhecia. E lá fui eu, um analfabeto em mecânica de carros, fazer-lhe companhia,
Escrevi mais acima que ele era unha de fome, na realidade, a sua despesa superava a sua receita e, por isso, pedia-me dinheiro emprestado.
Estava noivo, mas nunca aparecia com a noiva e a opinião quase unânime da turma da Chaves Pinheiro seria o medo de que todos se desforrassem, agora, das galhofas com que ele tanto se deleitou. Já trabalhava também no Hospital Rocha Maia, creio que como médico residente.
Pirulito tinha um irmão de que não falei, o mais novo, Afrânio. Ele era chatíssimo. Na Rua Chaves Pinheiro, quando ele despontava na esquina, um de nós dava o alarme: “Afrânio”, e todos se escondiam.
Um dia, nos estertores do campo Cachambi, um grupo de pessoas batia papo, sentado num tronco de árvore, quando chegou o Arrelia, uma figura da rua que levava o nome do bairro, e agrediu o Reginaldo com um cascudo, um rapaz frágil, que ficaria esquizofrênico e, posteriormente, foi abandonado pelo padrasto. Reginaldo, depois de uns segundos, ergueu-se do tronco e agarrou o agressor pelas orelhas, este se desvencilhou e lhe deu dois ou três tapas. Tonico, o brigão do grupo, acabou com a luta tecendo mil comentários sobre a valentia do agredido.
Nesse instante, Afrânio me sussurrou um xingamento, certamente porque não saí em defesa do seu companheiro de passeios. Relevei aquilo, pois nunca me portei como defensor dos fracos e oprimidos; eu mal sabia me defender.  Mas eu relevei aquilo mesmo?....
Não sei se passaram duas ou três semanas quando o Afrânio me chamou em casa; seu irmão lhe incumbira a missão de entregar-me todo o dinheiro que eu lhe emprestara mais o que foi chamado de juros. Um dos meus irmãos apareceu, a minha mãe também, casualmente e eu  entreguei ao Afrânio o tal juro de volta. Disse, em seguida, que avisaria ao Pirulito da devolução da quantia paga a mais. Mas não passou pela minha consciência, em momento algum, uma ofensa ao irmão mais maluco do Pirulito.
Afrânio me chamou, em seguida, para ir ao posto de gasolina mais próximo. Na minha inocência, guardei o dinheiro recebido em casa e fui. Lá, ele pediu uma Coca-Cola e passou a falar do que bebia como se fosse um licor dos deuses. Queria me humilhar. Tonico, o português que desfrutava da fama de sovina, viu aquilo, comprou uma garrafa de Coca-Cola e me deu. Enquanto o caráter de um escorria pelo ralo, o do outro se elevava.
Hoje, como se vê, tento explicar esse caso, mas eu me certifico cada vez mais que a explicação cabe a Freud.
Não sei se ele me envenenou com o Pirulito, pois nunca mais o vi. Minto: cinco ou seis anos depois, lá por 1981 ou 1982, eu vinha, na cidade com duas colegas de trabalho e cruzei com ele; olhamo-nos e seguimos adiante, um não tinha nada a falar com o outro.
Mas que valeu a pena eu ter conhecido o Pirulito, não resta a menor dúvida que valeu.

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