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quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

2091 - música para um bacalhau salgado

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3891 Data 27 de janeiro de 2012

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NO OÁSIS DO ADEGÃO

PARTE II

Luca atendeu o celular (*), mas o tema futebolístico continuou:

-Elio, o Pelé abraça o Messi no dia em que ele recebeu pela terceira vez o título de melhor do mundo e, no dia seguinte, diz que o argentino precisa de três copas do mundo e de mais de mil e duzentos gols para se comparar com ele. Essa autopromoção é insuportável.

-Mas ele precisa dela, Carlos.

-Há racismo, mil mazelas no futebol para o Pelé tratar, nos seus pronunciamentos, mas ele só abre a boca para falar o que todos já sabem, que ele foi o melhor com a bola.

-Ele brigou com muitos...

-Brigou até com o Gérson, Elio. E o Gérson, que jogou com ele, na seleção brasileira, garantiu que o Pelé jamais exigiu regalias, tirando partido da fama que usufruía: submetia-se aos mesmos deveres de todos os demais jogadores. Tinha uma humildade que disse que aprendeu com o pai, que também jogou bola. Mas depois que o Pelé veste o terno e se transforma no Édson Arantes do Nascimento, a modificação é brutal.

-Ele precisa se promover. - insistiu o Elio.

Nesse instante, o Luca desligou o celular. Olhando ao redor, disse:

-Aqui, no Adegão, tem um retrato do Eurico Miranda.

Ainda bem que não se encontra no nosso campo de visão, pois eu perderia o apetite. - pensei, sem me manifestar.

Não, não dava para perder o apetite; o Bacalhau ao Zé do Pipo, ao contrário de muitos que são pescados em águas turvas, estava simplesmente delicioso; era de fazer o Barão do Rio Branco rever o que dissera, que a bacalhoada não é um prato diplomático.

-O Adegão Português foi eleito como o melhor restaurante de bacalhau. (**)

Embora falasse com a boca cheia, eu e Elio entendemos e provamos o que o Luca dizia.

A comida não nos tirou do ar.

-Carlinhos citou o Millor e eu me lembrei da briga dele com o Chico Buarque. Há a briga do Aldir Blanc com o João Bosco, do Mário Vargas Llosa com o Gabriel Garcia Marquez...

-Nesse instante, aparteei o Luca:

-Eles são opositores politicamente; Mario Vargas Llosa comunga o pensamento neoliberal, enquanto o Gabriel Garcia Marques ficou muitas vezes em Cuba, com o Fidel Castro.

-Mas a briga não foi política. Vargas Llosa estava com problemas com a mulher e Gabriel Garcia Marquez, muito amigo do escritor peruano, se prontificou a reconciliar os dois. Com isso, envolveu-se com a mulher do amigo. Quando se encontraram, Gabo abriu os braços para dar um abraço no Vargas Llosa e recebeu um murro na cara que o sangue espirrou.

Elio Fischberg, por sua vez, contou a briga do Aldir Blanc com o João Bosco, quando também não respeitaram o brocardo popular: “mulher de amigo meu é homem.”

-Eu pretendia narrar a briga do Jean-Luc Godard com o François Truffaut, que vi, num documentário há dez dias, mas como não havia mulher envolvida, permaneci calado.

-Eu tenho ingressos para o show do Chico Buarque.

Os olhos do Luca se iluminaram.

-Muito bom, Elio?

-Luca, o Chico escreve as poesias, vai para o palco e os músicos mandam as notas musicais. Você não canta uma melodia desse último disco dele.

-Eu canto.

-Canta, então. - desafiou-o.

-Vou recitar...

-Está vendo, Carlos?... Luca vai recitar, porque não consegue cantar.

-Eu canto no carro.

-Cantando com a orquestra... Tem de cantar aqui,

O impasse dos dois não se resolvia, eu chegava à conclusão que não teríamos, como nos almoços passados, o dueto entre Apolíneo e Bem Apanhado.

-O Chico quer ser dissonante como o Tom Jobim, mas não dá. - criticava.

-Eu assisti a um DVD do Tom Jobim, em que ele está ao piano, tocando “Samba de uma nota só” e o Gerry Mulligan, ao clarinete. O americano não conseguia entrar na música, com o seu instrumento, pois ela começa com uma só nota, mas depois vem uma cascata de notas, além de alternâncias no ritmo. Então, o Gerry Mulligan fala na “cozinha do jazz”, ou seja, umas notas que cria o clima jazzístico. Tom Jobim faz, então, no piano “a cozinha do jazz”, e ele consegue, com o seu clarinete, captar o “ Samba de uma nota só”. - tagarelei.

- Eu tenho um amigo que viu “Águas de Março” surgir. - declarou o Elio.

Depois de descartar a Thereza Hermany e a Ana Beatriz Lontra, como mulheres do Tom em 1970, quando foi composta a canção, Elio falou da casa que ele fazia, com a companheira, nas lonjuras da cidade.

-Era pau, pedra, lama... Tudo isso ele colocava na letra. Festa na cumeeira...

-Elio, você viu o DVD do Van Gogh sobre as cartas do Theo? - perguntei, enquanto o Luca se ocupava de uns papéis que trouxera

-Não tive tempo, Carlos.

-Eu gravei e vou trazer para você um filme sobre os últimos meses do Tolstoi.

-Deve ser bom.

-Tolstoi foi endeusado, quando envelheceu. Transformaram-no numa espécie de santo, quando ele era um pecador como muitos por aí. Nos momentos de lucidez, ele se dizia menos tolstoiano do que seus adeptos. Com isso, a mulher dele, Sófia, que teve 13 filhos, leu e copiou os rascunhos de 1300 páginas de “Guerra e Paz”, seis vezes, ficou para trás. Tchertkov, o criador da religião Tolstoiana, conseguiu que ele deixasse toda a sua fortuna para os pobres. Sófia, com toda razão, lutou contra esse sujeito e a maluquice do marido. O filme mostra esse drama verídico com muita competência, Elio. O que de bom saiu daí foi que o Tolstoísmo influenciou Gandhi e Nélson Mandela.

Luca mostrou uma caricatura bem feita de uma mesa de pingue-pongue que chora, com a sua saída do Unibanco e uma fotografia do seu Fusca de 1973, com placa SW 3200.

Elio pediu um gato mineiro de sobremesa, que eu chamei de gato de botas. (***)

Diante de tanta doçura, eu me queixei de só darem valor, entre as obras do Umberto Eco, a “Em Nome da Rosa”.

-Cemitério de Praga” é excelente.- citou o Elio.

-A Ilha do Dia Anterior”, “O Pêndulo de Foucault”, cito só dos que li.- ressalvei.

Veio a conta, onde acrescentaram um terceiro chope que não desceu pela minha garganta nem pelos comensais que me acompanhavam.

Quando saímos do refrigerado Adegão Português, o calor era tão terrível, que o Campo de São Cristóvão mais parecia a Caatinga de São Cristóvão.

-Deixei o seu carro na pole position. - avisou-lhe o manobrista.

-Entra no carro, Elio, que vou deixá-lo no metrô.

Com o celular no ouvido, Elio aceitou o convite.

-Vou colocar o último disco do Chico.

-Mas vai ter de cantar. - desafiou-o de novo o Elio.

Quanto a mim, já estava conformado com o silêncio da dupla Apolíneo e Bem Apanhado.

(*) O Distribuidor do seu O BISCOITO MOLHADO, tomado de intensa preguiça corporal e lerdeza cerebral neste 02.02.02, informa que leu Lula em lugar de Luca. Quase que não sai o jornal.

(**) O Distribuidor faz saber que não nutre a menor simpatia pelo Adegão em pauta. Conhecedor do tema, recomenda o Adonis, de Benfica.

(***)...nem assim, morrendo de curiosidade, irei ao Adegão verificar o ‘gato mineiro’. Fico com a lembrança do ‘mineiro com botas’ sobremesa requintada, do Rio Minho, aliás, restaurante frequentado pelo Barão do Rio Branco, patrono da diplomacia e com quem concordo sobre o uso do bacalhau.

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