Total de visualizações de página

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

2100 - gorjetas congeladas

-------------------------------------------------------------------------------

O BISCOITO MOLHADO

Edição 3900 Data: 11 de fevereiro de 2012

-----------------------------------------------------------------------------

TÁXI...

Desci as rampas da estação do metrô de Maria da Graça pensando no antigo craque do Botafogo Nilton Santos que dizia, sobre os jogos às 15h 30min, no Maracanã, que aproveitava a sombra da marquise do estádio que caía sobre o gramado e que só saía para o sol quando o adversário vinha com a bola dominada.

-Pelo menos, há sombra nessas rampas.- sussurrei, enquanto o táxi do 017 me esperava de portas abertas.

-Que calor! - desabafei antes de sentir a maciez do banco do carona.

-Nem fala.

-Aqui, esta quentura, e lá em cima, no hemisfério norte, um frio de congelar até a alma. - comentei.

-Rapaz, está fazendo 47 graus abaixo de zero na Rússia. - mostrou-se embasbacado.

-Ouvi hoje, na Rádio CBN, durante minhas caminhadas, que em alguns lugares elevados da Suíça a temperatura atinge a 40 graus negativos.

-Mas na Rússia são 47 graus negativos.

Sem entrar na Rússia, fui ao Japão. O inverno japonês também é rigorosíssimo. Muitos nipônicos, ao retirarem a neve do telhado, escorregaram e morreram, sem falar naqueles que se foram por causa do frio mesmo.

-Não se vive com 47 graus abaixo de zero. - interrompeu-me com sua ideia recorrente.

-A Sibéria é maior do que o Brasil e muita gente vive lá. Não digo que toda essa região é habitada, que não é, mas a realidade lá, durante 365 dias do ano, não derrete. - manifestei-me.

-Você veja o congelador de uma geladeira, é zero grau (*). Imagine, agora, menos 47 graus. - insistiu.

Quase lhe disse que estava cansado de ver filmes, no cinema e na televisão, que mostram a retirada dos soldados de Napoleão de Moscou, em 1812.

-Certamente, não sai água da torneira e nem a descarga funciona com 47 graus abaixo de zero.

-Um amigo meu conhece uma senhora que passou inúmeras temporadas em Bruxelas, na Bélgica. Ela afirmou que não há nada melhor do que ouvir certas músicas com a neve caindo lá fora.

-Ela disse isso porque em Bruxelas não faz 47 graus abaixo de zero. - enfatizou.

Quando saltei do táxi, na Rua Modigliani, pensava nesse diálogo:

-Deu, pelo menos, para esquecer este calor de 40 graus. - confortei-me.

No dia subsequente, mal entrei no táxi do Botafoguense e ele deu início a uma jeremiada sobre os gols perdidos pelo nosso time no clássico de domingo, no Engenhão. Sem paciência para o futebol, mudei e assunto.

-A viagem de metrô se tornou uma tortura; se eu tivesse de trabalhar mais 5 anos no Centro, me mudaria para a Lapa.

-A Lapa melhorou muito.

-Lapa, precisamente, Rua do Riachuelo... Lá, moraram José do Patrocínio, Di Cavalcanti, Villa Lobos, Heitor dos Prazeres, Pixinguinha, Donga, João Pernambuco, Francisco Alves...

-Só gente boa. - entusiasmou-se o Botafoguense com seu jeito bonachão.

-Lá, também habitou a Capitu; nessa época, a rua se chamava Matacavalos, mas com a Guerra do Paraguai mudou o nome para Riachuelo.

-Por tudo isso, você escolheria a Rua do Riachuelo para morar na Lapa.

-A razão principal é que o meu pai trabalhou no “Diário de Notícias”, que ficava nessa rua. Garoto, eu adorava ficar no jornal com ele. Meu pai, às vezes, levava trabalho para fazer em casa, eu corria para auxiliá-lo, mas ele me expulsava para longe: “Você atrapalha mais do que ajuda”.

Botafoguense soltou uma gargalhada com as palavras do meu pai reproduzidas por mim.

-Está explicado, então, o seu carinho pela Rua do Riachuelo. - diagnosticou.

-O escritor Pedro Nava tinha paixão, ele anotou na autobiografia o desejo que as suas cinzas fossem jogadas na esquina da Rua Riachuelo com a Gomes Freire.

-A esquina certamente lhe traz boas recordações. - deduziu.

-O lugar já entrara em decadência quando o meu pai trabalhou lá, o Diário de Notícias, do Orlando Dantas, também, depois da sua morte. O jornal não ressuscitou, mas a rua, sim.

-Toda a Lapa ressuscitou. - deu ênfase às suas palavras o Botafoguense.

-Eu li que os lançamentos imobiliários se esgotam no mesmo dia, praticamente. Uma moradora do Edifício Victor, ao ser entrevistada, informou que volta e meia aparece alguém perguntando se há apartamento para alugar. A reportagem que me passou pelos olhos diz que esse edifício foi construído na década de 30 por um espanhol que morria de amores pelos nazistas, por isso, incrustou no piso mosaicos com a suástica.

-A marca do Hitler?!...

Antes de eu responder, o Botafoguense gargalhou de estremecer as ilhargas e parou no segundo poste da Modigliani.

No dia seguinte, entrei no veículo daquele taxista que, à minha pergunta, no ano passado, sobre casos de dengue em Maria da Graça e adjacências, respondeu-me que já teve meningite. Dessa vez, resolvi não mexer com o mosquito e falei da dificuldade do povo se locomover de casa para o trabalho.

-E com este calor...

-Esta soalheira nos tortura ainda mais dentro dos vagões. - concordei e, em seguida, me referi à viagem de metrô que me levara ao seu táxi.

-Os passageiros comentavam, na composição onde eu estava, que o povo se revoltou e apedrejou um trem. O senhor sabe de alguma coisa.

-Sei; eu via o programa do Vagner Montes, na televisão, quando deram a notícia. O que provocou a parada dos trens foi o roubo de cabos elétricos.

Esse cara está tratando de um fato que ocorreu dois dias antes, no metrô e que eu senti na carne. - pensei, sem me manifestar.

-O transporte de trens ficou prejudicado durante toda a manhã. - acrescentou.

Soube, mais tarde, por outra fonte, naturalmente, que o trem da Supervia enguiçara e os populares, revoltado com o descaso das autoridades, deram início a um quebra-quebra na estação de Sampaio.

No segundo poste da Modigliani, apresentei uma nota de 10 reais para pagar a corrida de 7,10. Dizendo que estava sem nota alguma, agitou-se e saiu em busca de um recipiente de plástico onde se encontravam as moedas.

-Aqui está 1 real.- disse, depois de juntar uma pilha de 10 centavos com gestos ansiosos.

Com a mão trêmula, repetiu tudo de novo. Pretendia dizer-lhe que não estava com pressa, mas ele podia estar, por isso, continuei calado.

-Mais 1 real.- entregou-me mais uma pilha de 10 centavos.

-Faltam agora 90 centavos.

-Não, não falta nada; eu sempre dou 8 reais de Maria da Graça até aqui.

Saltei do seu táxi, enquanto ele agradecia.

Quem me vir com tantas moedas, vai dizer que a minha receita do dia no sinal de trânsito foi boa. - calculei.

(*) A água se torna sólida a 0ºC, mas a temperatura média dos congeladores residenciais é -6 ºC.

Nenhum comentário:

Postar um comentário