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quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

2094 - alternantes, felizes dissonantes

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3894 Data: 30 de janeiro de 2012

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O SABADOIDO SOB CHUVA

PARTE III

-Há certas letras de música que eu mudaria. - disse o Luca sem se mostrar encabulado.

-”Chega de Saudade”, por exemplo, com aquelas palavras “beijinhos”, “carinhos”...

-O Vinícius colocava uns diminutivos... - criticou o parceiro de Tom Jobim, o Cláudio.

-A produção de letras do Vinícius era industrial? - perguntei, fazendo-me entender em seguida.

-Quero dizer que o Vinícius de Moraes colocava letra numa música com extrema rapidez.

-Sem dúvida. - concordou o Luca.

-Eu li a biografia do Vinícius de Moraes, escrita pelo irmão do Toquinho, em que ele revela que levou quinze dias para escrever a letra de “Chega de Saudade”. A música popular brasileira tinha o choro e o samba, como gêneros musicais e ali estava a canção que inaugurava outro gênero de musica, a bossa nova. A canção começa em tom menor e passa para tom maior, Vinícius penou para ajustar as sílabas às notas musicais. Mas com a sua letra, ele deu cara à bossa nova; daí vieram letras despojadas, sem dramas, como “O Pato”...

Cláudio e Luca reclamaram (*) em uníssono de “O Pato” e eu citei, então, “O Barquinho”, “Lobo Bobo”, “Desafinado”...

Não, não cheguei a exemplificar com “Desafinado” porque o Luca bradava altissonante, que ele sempre afirmara que Tom Jobim e Vinícius de Moraes formaram a maior dupla da música popular brasileira.

Menos enfático, acrescentou que eu dissera que o Tom Jobim homenageou o chorinho no arranjo de “Chega de Saudade”.

-Arthur da Távola, num programa dele na Rádio MEC, chamou a atenção para as primeiras notas do arranjo que representam um chorinho.

Luca trauteou o início para confirmar que há uma mudança repentina quando entram as sílabas de “Chega de Saudade” com a melodia.

Cláudio teceu loas ao Tom Jobim, enquanto o Luca se referia às críticas do Vinícius de Moraes à letra do Braguinha para “Carinhoso”.

-Com chuva, o Vagner não aparece. - disse o Cláudio, sem desviar o assunto em discussão.

-Diziam que o Manuel Bandeira considerava um verso do “Chão de Estrelas do Orestes Barbosa como o mais bonito da nossa poesia.

Citaram um verso que não era o da maior predileção do poeta da “Estrela da Vida Inteira”

-Tu pisavas nos astros distraída.” - disse e prossegui:

-O Paulo Mendes Campos dedicou uma crônica ao Chão de Estrela. Segundo ele, o último verso, que deveria ser o fecho de ouro, esculhamba com todo o poema. Ele considerou inteiramente infeliz o verso derradeiro: “a cabrocha, o luar e o violão”. Por que Paulo Mendes Campos não apresentou, então, um verso melhor, nessa crônica? Não quis passar de estilingue à vidraça.

Vale lembrar que, nos últimos anos de vida, Paulo Mendes Campos publicou no Globo inspirados poemas que até elogios do Millor Fernandes ganhou. Conta o poeta Geraldo Carneiro que, ao encontrá-lo, alardeou o seu talento, a mão segura para a poesia, e recebeu esta resposta: ”Não adianta... Eu não gosto de mim.”

-O Vinícius de Moraes, quando deu para escrever aquelas letras baianas, não foi mais o mesmo.

-Luca, nessa época, ele bebia litros de uísque. - contemporizei.

-O Tom Jobim também bebia e nunca perdeu a qualidade de compositor. - devolveu.

Gina, que havia chegado no carro da irmã, voltou para arrematar as compras da manhã, enquanto o Daniel preferia ficar recolhido na sala da televisão, embora a chuva já tivesse passado.

-Falei para o meu amigo Elio Fischberg que você, Claudiomiro, e o Carlinhos, conhecem cinema profundamente.

-Alguma coisa, Luca.

-Vocês estão sendo modesto.

Depois de pôr a mão num envelope, tirou uma crônica do Ruy Castro, e começou a lê-la. Tratava-se da história de Carlinhos, um cinéfilo, que acreditava no céu, e que lá, se encontraria com Frank Capra, seu ídolo, Com o cineasta, conversariam sobre “Galante Mr. Deeds”...

-Gary Cooper. - aparteou o Cláudio.

-Grande Gary Cooper! - vibrou o Luca.

-Frank Capra dirigiu ótimas comédias e o Cary Grant foi um ator perfeito para elas.

-Tudo bem, Carlinhos, mas Gary Cooper foi um excelente ator.

-Depois da intervenção do Cláudio, Luca retomou a leituras.

-... ”Eles conversariam sobre “Adorável Vagabundo”.

-”Do Mundo Nada Se Leva”, “Aconteceu Naquela Noite”, “Este Mundo é Um Hospício...” - espocaram as obras do grande diretor.

-”Carlinhos conversaria sobre Gary Cooper e James Stewart...”

-Ruy Castro deveria citar também o Cary Grant. - intervim.

-”Se Carlinhos não encontrar Frank Capra, poderá conversar com John Ford, Billy Wilder...”

Não sei se o Luca concluiu a sua leitura sobre Elia Kazan que, apesar de excelente cineasta, caiu em desgraça entre as pessoas éticas porque delatou colegas na época do Macartismo.

Gina chegou e, depois de trocar algumas palavras, foi para dentro de casa.

Voltou-se ao “Galante Mr Deeds”, não para falar dos nomes do filme, alguns bizarros, que recebeu: “Doido com Juízo”, em Portugal; “L'Extravagant Mr Deeds”, na França; “É arrivata La Felicità”, na Itália; “El Secreto De Vivir”, na Espanha. Falou-se especificamente do protagonista.

-Gary Cooper não atuou também em “Adeus às Armas”?

-“Adeus às Armas” é com Rock Hudson. - disse o Cláudio.

Adivinhei que o Luca fazia confusão com os livros de Ernest Hemingway que se transformaram em fotograma de celulóide e disse-lhe que Gary Cooper protagonizara “Por quem os sinos dobram”

-Você tem certeza?

-Luca, assisti ao “Adeus às Armas”, no Cine Cachambi, levado pela minha mãe num sábado à noite.

-É um filme de guerra.

-Isso, Claudiomiro, é um filme de guerra.

-”Por quem os sinos dobram” é um filme ambientado na Guerra Civil da Espanha e “Adeus às armas”, na Primeira Guerra Mundial. - ficou esclarecido.

Luca, depois de se referir ao desentendimento entre Ernest Hemingway e Scott Fitzgerald, disse que a Glória queria assistir, à noite, “Emilinha e Marlene”.

-São duas horas e quarenta e cinco minutos dentro de um teatro; eu não aguento. - justificou-se.

-Há óperas que duram mais de três horas.

-Claudio, se a ópera for de Wagner, dura mais de quatro horas.

-Muita coisa. - suspirou o Luca.

-Nesta semana mesma, eu assisti ao “Tristão e Isolda” de Wagner, em DVD, encenada no Scala Mundial, há poucos anos. Vi o primeiro ato na segunda-feira, o segundo na terça, e o terceiro, na quarta.

Só quando o Luca pegou de novo a palavra, atentei para o fato de a ex-prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, ter comparecido a essa récita. É verdade que só filmaram as autoridades italianas e árabes antes do início do espetáculo, e eu tive de recorrer à memória.

-Convenci a Glória a assistir outra peça de teatro hoje à noite.

Quando voltei do banheiro, pensando em não esquecer o guarda-chuva na hora de ir embora, encontrei os dois falando do desabamento de três prédios da Avenida Treze de Maio.

-Alguns, que escaparam, dizem: “Foi Deus”. E os que não escaparam?... Vamos supor que o meu filho e o Daniel vão viajar, o meu filho desiste e o avião cai. Eu vou dizer: “Foi Deus”? E para o Daniel, não foi Deus, não?!

-O que tem o Daniel?- perguntou a Gina da cozinha.

-Ouvido de mãe escuta tudo. - falei para o Luca.

Em poucos segundos, aparecia o Daniel no Sabadoido, informando que faria um seguro de vida.

(*) O Distribuidor do seu O BISCOITO MOLHADO é um fã da Bossa Nova e, vez por outra, topa com comentários de nariz torcido sobre a densidade das letras da época. Talvez isso possa ser debitado às gerações que não escutaram as músicas imediatamente anteriores à chegada da Bossa Nova. As letras eram densas, sobre corações dilacerados, abandonos hediondos, traições, ciúmes e outras deturpações da alma e da paixão. Quando a Bossa chegou com a praia, o rebolado, o barco, não foi só a alternância de tons dentro da música que veio como inovação, mas toda a referência. Os temas largaram as agruras da alma e buscaram objetos, adjetivos e locações que combinassem com a leveza que se propunha musicalmente.

Interessante que Chega de Saudade é, ao mesmo tempo, uma letra inovadora e um basta nos trituradores da alegria, desde o título até os beijinhos, peixinhos e abraços.

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