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terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

2097 - begin the beguine

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3897 Data: 04 de fevereiro de 2012

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A IMPORTÂNCIA DO INÍCIO

-”Morri em...” Não me lembro o ano. (*)

Quem morreu não fui eu nem meu professor de português do 4º ano ginasial, que disse a frase acima. Explico-me: Machadiano, e meu melhor mestre no ensino do nosso complexo idioma, citou o trecho que aqui vai aspado para mostrar que Machado de Assis prendia a atenção do leitor desde as primeiras palavras de um conto ou romance. É evidente que as palavras não eram exatamente estas, mas o meu professor – recordo-me do seu nome completo, José Vinícius Frias Ruas – falava para uma turma de garotos de 16 anos, por isso se importou mais em fixar nas nossas cabeças a excelência de Machado de Assis desde o começo das suas obras.

Muitos anos depois, vi o Gabriel Garcia Marquez, numa entrevista na televisão, discorrendo sobre o tempo que dedica para alcançar a frase inicial dos seus romances. Como leitor, ele lembrou Franz Kafka, que abre o livro “A Metamorfose” magistralmente:

“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua casa metamorfoseado num inseto monstruoso.”

O escritor colombiano aprendeu a lições dos grandes da arte literária, pois o “Amor no Tempo do Cólera” principia de uma maneira inesquecível para o leitor:

“Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas lhe lembrava sempre o destino dos amores contrariados.”

Nunca um suicídio foi apresentado de uma maneira tão delicada.

E Gabriel Garcia Marquez prossegue:

“O doutor Juvenal Urbino o sentiu logo que entrou na casa ainda mergulhada nas sombras, à qual chegara acudindo a chamado de urgência. O refugiado antilhano Jeremiah de Saint-Amour, inválido de guerra, fotógrafo de crianças e seu adversário de xadrez mais compassivo, se havia posto a salvo dos tormentos da memória com uma fumigação de cianureto de ouro.”

Se pedirem a alguém que leu as mais de 800 páginas de Ana Karenina, de Leon Tolstoi, que reproduza textualmente uma frase desta obra-prima, acredita-se que quase todos reproduzirão a primeira frase:

“Todas as famílias são iguais; as infelizes o são cada uma à sua maneira.”

Leon Tolstoi dedica o primeiro capítulo da novela “A morte de Ivan Ilitch”, à repercussão do seu falecimento entre seus conhecidos do Tribunal e de casa. No segundo capítulo, o foco do escritor recai sobre o protagonista, e a primeira frase, aquela que resume Ivan Ilitch, é tão estarrecedora que se fixa logo na nossa mente:

-”A história da vida de Ivan Ilitch foi das mais simples, das mais comuns e, portanto, das mais terríveis.”

Marcel Proust abre os sete volumes de “À Procura do Tempo Perdido” como se musicasse o cotidiano que passou.

-”Longtemps, je me suis couché de bonne heure.”

Como a melodia das palavras de Marcel Proust se esvai na tradução, muitos reproduzem esta abertura da magnífica obra no original:

-”Longtemps, je me suis couché de bonne heure. Parfois, à peine ma bougie éteinte, mes yeux se fermaient si vite que je n' avais pas le temps de me dire: “Je m' endors”. Et, une demi-heure après, la pensée qu' il était temps de chercher le sommeil m' éveillait; je voulais poser le volume que je croyais avoir dans les mains et souffler ma lumière; je n' avais pas cessé en dormant de faire des réflexions sur ce que je venais de lire; mais ces réflexions avaient pris un tour particulier; il me semblant que j' étais moi-même ce dont parlait l' ouvrage: une église, un quatuor, la rivalité de François Ier et de Charles-Quint...”

(“Durante muito tempo, deitava-me cedo. Ás vezes, mal apagada a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: “Vou dormir”. E meia-hora depois, a ideia de que já era tempo de conciliar o sono me despertava: queria deixar o livro que julgava ainda ter nas mãos e assoprar a vela; dormindo, não havia deixado de refletir sobre o que acabara de ler, porém tais reflexões haviam tomado um aspecto um tanto singular; parecia-me que era de mim mesmo que o livro falava: uma igreja, um quarteto, a rivalidade de Francisco I e Carlos V.”)

Voltando algumas décadas no passado, saindo da França para a Inglaterra, passando de Marcel Proust para Charles Dickens.

A antítese, que aprendemos na escola como figura de linguagem, foi explorada de maneira genial e insuperável por Charles Dickens nos primeiros parágrafos do seu romance “Um conto de duas cidades.”

O autor, numa das poucas vezes em que enveredou pela história, cria a sua obra em 1859. “Um conto de duas cidades” é ambientado em Londres e em Paris, antes e durante a Revolução Francesa. Charles Dickens mostra o contexto que contribuiu para essa revolução: a miséria de um lado, o elitismo do outro, sendo a opressão e a brutalidade os elos entre os dois; mostra a pobreza faminta e a riqueza luxuosa. Com a mente nesse mundo contraditório, Charles Dickens principia “Um conto de duas cidades” com uma frase antológica que ficou marcada na literatura universal.

-”Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos, foi a era da sabedoria, foi a era da insensatez, foi a época da crença, foi a época da incredulidade, foi a estação da Luz, foi a estação da Escuridão, foi a primavera da esperança, foi o inverno da desesperança, tínhamos tudo à nossa frente, nada tínhamos à nossa frente, íamos todos diretos para o Céu, íamos todos diretos ao sentido oposto – abreviando, esse período era tão desigual ao presente que algumas das suas mais barulhentas autoridades faziam questão de serem recebidas, para o bem para o mal, num grau superlativo de simples comparação.”

O filho de uma amiga minha, que conheci menino, quando se formou em Economia pela PUC, por volta de 1992, enviou-me o convite de formatura, e lá estavam as palavras de Dickens de “Um conto de duas cidades”, que nós transcrevemos. O mundo continuava contraditório...

Vamos encerrar como iniciamos; com um grande escritor brasileiro.

A primeira página do romance “Iracema”, de José de Alencar, é um autêntico poema em prosa. Vale reproduzir um trecho:

“Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba. Verdes mares, que brilhais como líquida esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiro.”

“Serenai verdes mares, e alisai docemente a vaga impetuosa, para que o barco aventureiro manso resvale à flor das águas.”

(*) Não achei a menor graça nas últimas frases desta edição do seu O BISCOITO MOLHADO. Entretanto, teria adorado a primeira, caso as aspas incluíssem as aspas e o verbo decorrente da aplicação delas tornaram-se o pomo da discórdia entre o redator e o ex-revisor em busca de raízes, radicais e fundamentos da formação e uso de aspar, ou aspear mas, como ia dizendo, incluíssem toda a frase: “Morri em... Não me lembro o ano”. Vou procurar me lembrar mais tarde dela, para colocar no início do meu romance, que não será autobiográfico.

Já pensaram no impacto do quantum de esquecimento contido no ato de se esquecer da própria morte? Maior, com certeza, do que a cena de abertura de “Sunset Boulevard” quando o morto começa a narrar o filme. E que já é um impactão.

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