Total de visualizações de página

sexta-feira, 27 de março de 2015

2821 - Enfarolado Dicionário Biográfico


-------------------------------------------------------

O BISCOITO MOLHADO

Edição 5071                               Data:  24 de março de 2015

-------------------------------------------------------


MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO

PARTE XXII


ALVORADA – Comumente, dá-se mais valor aos pores do sol. Quantas vezes foram notícia nos jornais os aplausos do uma pequena multidão ao crepúsculo no Arpoador?  Outras praias também já foram aplaudidas.

Não faz muito tempo, uma minissérie televisiva ambientada no Rio Grande do Sul, no tempo da Guerra dos Farrapos, mostrou lindas imagens do sol partindo para a chegada da noite. Uma amiga minha gaúcha me garantiu que é para ser visto ao vivo, que não existe pôr do sol mais bonito do que os da sua terra.

E a alvorada? Nunca li uma só linha no jornal sobre aplausos ao nascer do sol, seja no Arpoador, no Leblon, ou qualquer outro lugar.  Talvez todos estejam ainda dormindo, com a exceção dos trabalhadores e dos alunos do Colégio Militar que estão espremidos em trens, metrôs, ônibus lotados ou mesmo em carros particulares, sem condições de contemplar quaisquer coisas no céu que não sejam as nuvens para saber se vai ou não chover.

O compositor Carlos Gomes deu o devido valor à Alvorada, transformando-a numa peça sinfônica da sua ópera “Lo Schiavo” - “O Escravo”, que seria sua obra-prima caso ele não deturpasse a história, transformando o africano em índio para atender às exigências argentárias do seu editor. Na música popular, Cartola compôs um belo samba, “Alvorada”. O que mais?... Não me recordo. Enfim, a chegada do sol não atrai a mesma atenção do que a sua partida.

As minhas corridas, depois caminhadas, feitas nas horas em que a noite se transforma em dia, tornaram as alvoradas tão corriqueiras para mim que nem me detenho para olhá-las mesmo cansado.

No entanto, há uma alvorada que a minha irmã narrou que nunca esqueci. Nós já tínhamos saído da segunda infância, que se encerra com cinco anos de idade, estávamos com sete, oito anos de idade, quando, não sei por que cargas d' água, acordamos os dois muito cedo. Meu pai colocou a minha irmã sentada no parapeito da janela e ficou ao seu lado, enquanto eu, no chão da casa, nada via do que se passava lá fora. Então, a minha irmã começou a falar do sol que nascia, de como era belo e a minha imaginação se inflamou. Privado de assistir a ele, eu fantasiava que perdia o mais belo de todos os amanheceres. Guardo até hoje essa sensação comigo, mesmo não me recordando de uma só palavra da minha irmã, mas, caso me recordasse, talvez estragasse tudo.


FAROLEIRO – Dia desses, bati as vistas numa notícia de 22 de março de 1995: um cosmonauta russo bateu o recorde de permanência no espaço, ao ficar por lá durante 438 dias. Logo fui conduzido para um conto que li, já adolescente, na casa da minha avó.

Lá, havia uma estante que transbordava de livros. O pai da minha mãe, até a sua morte, em 1946, adquiriu bons livros para abastecê-la e a minha avó, que não tinha gosto tão apurado, guardou nela romances água com açúcar e mesmo novelas da Rádio Nacional que eram impressas e editados em fascículos como “O Direito de Nascer”. Naquela idade, eu não era seletivo: abria as portas envidraçadas de correr da estante e pegava livros que estivessem mais à mão. Com essa falta de critério, tanto dediquei a minha leitura à mencionada novela cujos fascículos foram encadernados em quatro volumes, como contos de Machado de Assis, como “Noite de Almirante”.

Um conto não saiu da minha mente mesmo que nunca mais o tenha visto, embora o buscasse no correr destes anos. Tratava-se de um faroleiro que, sozinho numa ilha, guiava os navios mercantes que se aproximavam. Ele fazia o seu trabalho e, com o passar do tempo, acostumou-se a ficar só, em deixar de ser gregário. Estava, assim, longe dos aborrecimentos provocados pelas pessoas, pouco se importando com as alegrias que também vêm delas. Ele sentiu a volúpia da solidão.

Quis revisitar esse conto, captar ideias que o meu cérebro de adolescente não foi capaz de perceber, mas, como disse antes, nunca mais o encontrei. Com o surgimento da Internet, a mais completa das bibliotecas, porque também recebe muitas bobagens, a minha esperança de encontrar essa obra se intensificou. Teclei “conto O Faroleiro”, e surgiu o nome do escritor (polonês, pelo número de consoantes), Henryk Sienkiewicz. Com mais algumas pesquisas, descobri (*) que ele nasceu em 1951; não, com 12, 13 anos de idade ninguém conseguiria redigir uma história como aquela.

Para se sentir a volúpia da solidão, é preciso viver muito tempo  entre os nossos semelhantes.


PAU DE SEBO – Nunca enfrentei um pau de sebo, mas oportunidade para isso eu tive. A maior delas aconteceu numa festa junina promovida pelo Maurício, o banqueiro de jogo de bicho e corridas de cavalo do bookmaker da Rua São Gabriel. A festividade, que foi de manhã a tarde, ocorreu num terreno que, anos mais tarde seria ocupado pelos supermercados Coma Bem, Casas da Banha e São Jorge de Cascadura.

Lá estavam  a molecada da redondeza, os bicheiros e  demais adultos que nada tinham o que fazer naquela hora e outras também. A grande atração era um pau de sebo em cujo topo o chefão colocou uma nota preta, ou seja, uma cédula de elevado valor.

Pessoas de todas as idades se apresentavam para a subida formando uma fila indiana que nunca acabava, pois quem fracassava na tentativa podia tentar novamente desde que se dirigisse para o final dela. Nem mesmo a boazuda do 108, número do prédio da Rua São Gabriel, amante do chefão, cobiçada por todos discretamente, afastou os nossos olhos para os escaladores do pau de bebo. Mas ele deveria ter sido untado com toda a gordura do açougue do pai do Joaquim, pois ninguém conseguia subir mais do que 2 metros. Os concorrentes, atracados com pés e braços no pau de sebo, subiam um pouco, escorregavam, intentavam de novo, até que as suas forças se esgotavam, e desciam até os pés baterem no chão.

Meu irmão Claudio tentou, subiu, desceu, subiu de novo, e se deu por derrotado.

-Não vai tentar? - cobraram de mim.

Não me atrevi, subir em pau de sebo só em Pasárgada como o poeta.

Meu irmão chegou de noite imundo, em casa, como se tivesse sido pintado para atuar no papel do Grande Otelo com 13 anos de idade em algum filme sobre a vida desse artista. Ficou horas no banho.

Não tive conhecimento de alguém que tenha alcançado o topo do pau de sebo.

(*) Asterisco do Redator:
ERRATA:

O conto "O Faroleiro", citado na edição nº 2821, foi escrito, de fato,por Henryk Sienkiewcz, autor polonês que viveu de 1846 a 1916. Ele não nasceu em 1951 como consta na mencionada edição."

Abraços e Obrigado.
Biscoito

Nenhum comentário:

Postar um comentário