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sexta-feira, 20 de março de 2015

2814 - Atrapalhadíssimo Dicionário Biográfico, revisado.


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5064                               Data:  11 de março de 2015

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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO XVIII

 

MONTORITE – Não sei se este verbete já foi incluído no Aurélio ou no Houaiss, mas entra neste microdicionário. Quem acompanha a história recente da política brasileira conhece, sobejamente, o seu significado. O ex-governador de São Paulo, André Franco Montoro, trocava tanto os nomes das pessoas – o jornalista Jânio de Freitas, por exemplo, foi chamado por ele de Jânio Quadros – que cunharam a palavra “montorite”.

Não sei se os leitores já perceberam que eu sofro de montorite. Como o Biscoito Molhado passa pela minha revisão (nem sempre, às vezes esqueço) e, durante um bom tempo, pela revisão do Elio Fischberg, as minhas crises de montorite eram limadas a tempo, mas, numa conversação, numa fala de improviso, não há como evitá-las.

É um mal hereditário?... Bem, minha mãe, algumas vezes, quando me chamava, só acertava o meu nome na terceira tentativa, ou seja, depois de dizer os nomes dos outros dois filhos dela. Minha irmã era, ainda é, bem pior: chama-me de Luciana e Verônica, suas filhas, até chegar ao Carlinhos, quando estamos conversando. Mas não chega a se configurar um caso de montorite, pois são essas trocas apenas; ou seja, convivendo diuturnamente com as filhas, seus nomes vêm à sua boca automaticamente. Não é o meu caso.

A minha montorite não surgiu quando eu era estudante, nunca chamei, por exemplo, o Felipe Camarão de Felipe Macarrão, ou o Frei Caneca de Frei Careca, mas sim quando eu já estava com 30 anos de idade. O meu primeiro sintoma, se a memória não me atraiçoa, aconteceu quando eu estava em São Paulo a trabalho. Lá, eu falava com uma colega de serviço, aqui, no Rio, pelo telefone, quando me avisaram que o doutor Jobim, um funcionário do Ministério do Planejamento, precisava fazer uma ligação. “Vou desligar porque o Danton Jobim, precisa do telefone.” Horas depois, ela ralhava comigo, relembrando seu tempo de professora: “Que diabo de Danton Jobim é este?” Expliquei-lhe que ele fora senador do MDB pelo Rio de Janeiro e que morrera anos atrás, que falei o seu nome sem perceber. Depois, ela se acostumou com as minhas montorites.

Outra colega minha de trabalho reportou-se aos desenhos animados da Warner Brothers, a que assistia  quando menina, para me nomear, em vez de “Hortelino Troca-Letras” de  “Hortelino Troca-Nomes”. Era bem mais simpático. Caso alguém esboçasse alguma irritação comigo ao ver seu nome alterado, julgando-me um engraçadinho, eu logo o acalmava: “Desculpe-me, eu sou o Hortelino Troca-Nomes”. Se eu me desculpasse citando a minha montorite, eu não seria tão eficaz, pois poucos sabem quem foi André Franco Montoro, apesar de ele ter sido uma das grandes personalidades da política deste país.

Escrevi, parágrafos acima que, neste periódico, este meu mal não aparece, devido às revisões, mas um dia as revisões falharam: chamei o Jonas Vieira, o apresentador do Rádio Memória, programa dominical da Rádio Roquette Pinto, de Jonas Rezende, o pastor.  Jonas Vieira se irritou, ao contrário do Danton Jobim do meu trabalho e me parece que não metabolizou até hoje essa minha troca.

Quantas vezes, nessas revisões do Biscoito Molhado, mudei o nome do Sérgio Fortes para Sérgio Britto e tive de corrigir. Mas não seria um erro muito grande, garante o Dieckmann, porque os dois guardam muitas semelhanças.

 

PIPA- Minha mãe não ficava um domingo sem visitar a sua genitora em São Cristóvão. Quando não era a minha irmã que ela carregava consigo, era eu, o que acontecia muitas vezes, pois a minha avó era a minha madrinha.

Naquele domingo, a sua acompanhante foi a minha irmã. Quando as duas retornaram da Rua General Padilha, ao cair da tarde, traziam uma pipa de tamanho maior do que as que eu costumava cobiçar nas lojas. Uma pipa de papel fino de cor azul, rabiola e muita linha cordonet, que era mais forte do que a linha 10 - a preferida dos soltadores de pipa experientes - e ainda mais potente do que a linha 24.

As duas contaram que, passando por uma rua de São Cristóvão, toparam com essa pipa voada (assim denominavam a pipa cuja linha tinha sido cortada por outra) na calçada, sem que tivesse aparecido um só moleque correndo atrás dela, o que era um fato inteiramente anormal, impossível de acontecer, por exemplo, no Cachambi.

Minha mãe pegou a pipa e minha irmã puxou a linha infindável, enquanto a enrolava num pedaço de madeira.

Entrando lá em casa com o achado, ganhei-o, como primogênito, de presente.

Eu, que até então nunca soltara pipa, coloquei-a no alto, provavelmente com uma providencial ajuda do vento.

Pipa nas alturas, solto a plenos pulmões, o grito provocativo de todo moleque:

“Tá com medo, tabaréu,

É de linha de carretel”.

Muito tempo depois vim saber que tabaréu é caipira ou soldado que, por pouca experiência, não faz as coisas corretamente.

Em poucos minutos, uma pipa se aproximou da minha com más intenções. Não fugi da briga, aliás, eu nem tinha o traquejo de soltador de pipa para evitar o ataque inimigo. Eu era pipeiro de primeira viagem.

As duas pipas se embolaram uma na outra. Apesar dos meus bracinhos de garoto de menos de 10 anos de idade, com uma intensidade incomum, eu “bracei” (verbo do mundo da pipa que quer dizer puxar repetidamente, alternando os braços, uma linha). Então, deu-se o impasse: as linhas das duas pipas se esticaram sobre o terreno baldio que ladeava o muro da minha casa e de um posto de gasolina. Um puxão resolveria aquilo e foi o que aconteceu. Puxei, a linha adversária se rompeu, e as duas pipas vieram para a minha mão. Enlouqueci de alegria e o berro de todo soltador bem sucedido irrompeu da minha garganta por diversas vezes: “Eeeeera nego”. Ou a expressão era “Cheira, nego”? Nós nos limitávamos a repetir os bordões ancestrais sem nos importar com a sua exatidão.

Logo, apareceu o Paulinho Cauby, filho do dono de um armarinho de tecido, localizado nas proximidades, pedindo a sua pipa, a que eu cortara, argumentando que ele estava com linha 10 pura, sem cerol, que não pretendia que a sua pipa cruzasse com a minha. Pediu com tanta educação, que a minha mãe se juntou a ele no pedido.

De noite, reproduzi o meu feito épico para o meu pai e lhe disse que só devolvi a pipa do garoto porque ele me pediu chorando.

 

 

 

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