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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5057 Data: 27 de
fevereiro de 2015
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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO
PARTE XV
MEMORIZAÇÃO – Eu deveria estar com 7 anos de idade, e uma das
minhas primas, 5; nós nos achávamos no casarão da minha avó da rua General
Padilha, São Cristóvão. No momento em que todos se encontravam juntos, na sala
de jantar, minha tia começou a perguntar a capital dos estados brasileiros à
menina, sua filha. A cada resposta certa da garota, ela arreganhava os dentes,
prenhe de orgulho.
Não escreverei aqui que ela exibiu a
filha como uma circense que busca os aplausos da plateia exibindo, por exemplo,
um chimpanzé equilibrista. Não senti inveja, apenas curiosidade por aquela
sabatina, novidade para mim, e a certeza de que não queria estar nunca no lugar
da minha priminha performática naquela hora.
Foi com 7 anos de idade que entrei para
a escola, naquela época, o ingresso na vida escolar era tardio, diferentemente
dos padrões atuais quando, com 4 anos, se não me engano, se inicia a
alfabetização.
Nos meus primeiros anos no colégio, eu
ainda me atrapalhava com o polegar opositor que me permitiria o movimento de
pinça com os dedos– aquilo que desenvolveu exponencialmente o cérebro humano e
nos elevou sobre os demais primatas. Eu segurava o lápis como um cozinheiro
segura a colher de pau para misturar a farinha de trigo com o leite na panela.
Ultrapassadas as primeiras dificuldades
em aprender, comprovadas nas minhas notas altas, porém nunca supersônicas,
percebi que possuía uma boa memória. Essa percepção foi confirmada no terceiro
ou quarto ano do curso primário, quando minha professora, Dona Arlete ou Dona
Eunice, inovou: tirava um dia da semana para convocar seus alunos, em grupo de
cinco, para sabatinas. Ela ficava sentada à sua mesa, e nós nos colocávamos de
pé, com o quadro negro, que era verde, atrás de nós, e nos bombardeava de
perguntas sobre Conhecimentos Gerais, matéria esta que englobava Geografia,
História e Ciência.
Eu acertava tudo, até os afluentes do
lado esquerdo e do lado direito do Rio Amazonas. Respondia sem questionar se
era o lado de quem subia ou descia o Rio. Eu lia sem filtrar a leitura,
simplesmente decorava.
Numa dessas sabatinas, eu não me sentia
bem, meu estado era febril. Depois, em casa, deixei-me cair sobre a cama
sentindo-me um herói: acertara tudo.
Na intermediação do curso primário para
o ginasial, tive um professor que dava “estalos” nos alunos - tapas na nuca.
Como as vítimas eram os malcomportados, eu não me abalava, embora não me
agradasse assistir a um colega ser agredido. Um dia, o agressor abriu um livro
e nos disse que existiam dezessete preposições na língua portuguesa (ele dava
aula de matemática no Pedro II), ordenou que olhássemos bem para cada uma
delas. E veio o pior: na aula do dia seguinte, cada aluno deveria citar de cor
todas as dezessete, cada omissão representaria um estalo. Estava implantado o
terror. Eu confiava na minha memória, mas nos meus nervos, não. Faltei a essa
aula, ninguém foi, com exceção de um garoto que se vangloriou, durante muito
tempo, diante de nós,de ter sido o único que tivera peito de enfrentar aquele
desafio. Na verdade, as porradas que levaria do pai, caso não aparecesse na
aula, eram bem piores do que os estalos.
Como se ainda sofresse o risco de
receber taponas na nuca, cito até hoje, de cor, todas as preposições.
No ginásio, cheguei – agora sim – às
notas supersônicas com História do Brasil, na primeira série; História da
América, na segunda; e História Geral na terceira e quarta séries.
Esse dom não me prejudicou em
matemática, matéria que requer raciocínio ( tabuada á parte que tem,
obrigatoriamente, de ser memorizada), mas em geografia, sim; isso no segundo
ano. Apareceu um professor com um método inteiramente inusitado para nós; ele
pretendia que seus alunos alcançassem as respostas certas por dedução. Como eu
só tinha 14 anos de idade, não posso afirmar que ele usava a maiêutica, o
método socrático de ensino.
Nas provas, ele pedia a turma que
consultasse o caderno. Abrir caderno no meio da prova, para mim, era a mais
desavergonhada das colas, e vendo meus colegas com a folha de papel almaço do
exame com o caderno aberto do lado, eu sentia tudo estranho. Não me adaptava
àquela didática, e advieram as notas baixas.
Houve uma vez que, antes de entregar as
provas corrigidas a cada aluno, o professor disse que era coisa de analfabeto
colocar em ordem crescente o que ele
pedira em ordem decrescente. Não indicou o analfabeto, que era eu, teve, pelo
menos, essa delicadeza. Na verdade, aquela aprendizagem de Geografia já me
deixava perturbado.
Um dia, ele quis saber das minhas notas
em outras matérias. “O que há de errado?” - perguntou depois de ouvir notas
acima de 7.
Os exames de setembro e outubro foram
decoreba pura; cada aluno recebeu folhas em que estavam desenhados mapas dos
cinco continentes. Nós tínhamos de localizar e nomear os acidentes geográficos
destacados: rios, ilhas, lagos, mares, penínsulas, etc. Não perdi essas duas
oportunidades que me foram dadas e, assim, consegui média para evitar
sobressaltos e passar para o ano seguinte.
Com o transcorrer dos anos, vieram os
lapsos de memória, nada que me assuste, pois o que esqueço agora me vem à mente
depois; o único inconveniente é a perda da fluência numa conversação. Como sou
de pouca fala, não há muito a lamentar.
A troca de nomes sim, deixa-me em
situação constrangedora, algumas vezes, mas falarei disso mais tarde no verbete
“Montorite”.
VERDADE - “Professora, posso ir ao banheiro?” A resposta da
professora ao meu pedido com entonação de pergunta, foi um ríspido “Não”.
Havia uns garotos da minha turma que,
depois de dada a permissão para irem ao banheiro, ficavam mais de uma hora
sumidos da sala de aula; não há dor de barriga, ou constipação, que exija tanto
tempo de uma pessoa na privada. Esses garotos eram os bagunceiros da classe,
qualquer pessoa que privasse daquele ambiente os identificaria sem muito
esforço. Eu fazia parte do grupo dos quietinhos, dos alunos que recebiam 100 no
boletim (as notas da Escola Manoel Bomfim iam de 0 a 100) em comportamento.
Recordo-me do nome de quatro
professoras do curso primário – Dona Tereza, Dona Arlete, Dona Eunice e Dona
Dulce – já o nome dessa, que enfiava arruaceiros e comportados no mesmo saco)
se apagou na minha mente (nesse caso, a minha memória foi seletiva).
Se a minha vontade fosse de urinar, o
erro dessa professora intolerante seria menor.
Meu cérebro deu a ordem para que as
fezes fossem eliminadas, e eu, me via obrigado a desobedecê-lo. Um pirralho de
pouco mais de 8 anos estava sendo torturado em plena sala de aula.
Ao apanhar-me na saída da escola, logo
a minha mãe sentiu o cheiro que penetrou nas narinas de Jean Valjean quando ele
carregou o republicano Mário nos ombros pelo esgoto de Paris. A primeira reação
da minha mãe foi repreender-me, mas, depois, que esclareci o porquê dessa
crueldade a que fui submetido, ela disse que a professora deveria me limpar.
Não, que ela ficasse o mais longe
possível de mim, principalmente das minhas nádegas.
Meu pai, assoberbado de tanto trabalho
em mais de um jornal, não soube desse caso, se soubesse, provavelmente me
aconselharia a levar para a sala de aula um penico e o deixasse sobre a mesa,
debaixo do nariz da professora.
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