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quarta-feira, 11 de março de 2015

2807 - Higiênico Dicionário Biográfico


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5057                              Data:  27 de fevereiro de 2015

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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO

PARTE XV

 

MEMORIZAÇÃO – Eu deveria estar com 7 anos de idade, e uma das minhas primas, 5; nós nos achávamos no casarão da minha avó da rua General Padilha, São Cristóvão. No momento em que todos se encontravam juntos, na sala de jantar, minha tia começou a perguntar a capital dos estados brasileiros à menina, sua filha. A cada resposta certa da garota, ela arreganhava os dentes, prenhe de orgulho.

Não escreverei aqui que ela exibiu a filha como uma circense que busca os aplausos da plateia exibindo, por exemplo, um chimpanzé equilibrista. Não senti inveja, apenas curiosidade por aquela sabatina, novidade para mim, e a certeza de que não queria estar nunca no lugar da minha priminha performática naquela hora.

Foi com 7 anos de idade que entrei para a escola, naquela época, o ingresso na vida escolar era tardio, diferentemente dos padrões atuais quando, com 4 anos, se não me engano, se inicia a alfabetização.

Nos meus primeiros anos no colégio, eu ainda me atrapalhava com o polegar opositor que me permitiria o movimento de pinça com os dedos– aquilo que desenvolveu exponencialmente o cérebro humano e nos elevou sobre os demais primatas. Eu segurava o lápis como um cozinheiro segura a colher de pau para misturar a farinha de trigo com o leite na panela.

Ultrapassadas as primeiras dificuldades em aprender, comprovadas nas minhas notas altas, porém nunca supersônicas, percebi que possuía uma boa memória. Essa percepção foi confirmada no terceiro ou quarto ano do curso primário, quando minha professora, Dona Arlete ou Dona Eunice, inovou: tirava um dia da semana para convocar seus alunos, em grupo de cinco, para sabatinas. Ela ficava sentada à sua mesa, e nós nos colocávamos de pé, com o quadro negro, que era verde, atrás de nós, e nos bombardeava de perguntas sobre Conhecimentos Gerais, matéria esta que englobava Geografia, História e Ciência.

Eu acertava tudo, até os afluentes do lado esquerdo e do lado direito do Rio Amazonas. Respondia sem questionar se era o lado de quem subia ou descia o Rio. Eu lia sem filtrar a leitura, simplesmente decorava.

Numa dessas sabatinas, eu não me sentia bem, meu estado era febril. Depois, em casa, deixei-me cair sobre a cama sentindo-me um herói: acertara tudo.

Na intermediação do curso primário para o ginasial, tive um professor que dava “estalos” nos alunos - tapas na nuca. Como as vítimas eram os malcomportados, eu não me abalava, embora não me agradasse assistir a um colega ser agredido. Um dia, o agressor abriu um livro e nos disse que existiam dezessete preposições na língua portuguesa (ele dava aula de matemática no Pedro II), ordenou que olhássemos bem para cada uma delas. E veio o pior: na aula do dia seguinte, cada aluno deveria citar de cor todas as dezessete, cada omissão representaria um estalo. Estava implantado o terror. Eu confiava na minha memória, mas nos meus nervos, não. Faltei a essa aula, ninguém foi, com exceção de um garoto que se vangloriou, durante muito tempo, diante de nós,de ter sido o único que tivera peito de enfrentar aquele desafio. Na verdade, as porradas que levaria do pai, caso não aparecesse na aula, eram bem piores do que os estalos.

Como se ainda sofresse o risco de receber taponas na nuca, cito até hoje, de cor, todas as preposições.

No ginásio, cheguei – agora sim – às notas supersônicas com História do Brasil, na primeira série; História da América, na segunda; e História Geral na terceira e quarta séries.

Esse dom não me prejudicou em matemática, matéria que requer raciocínio ( tabuada á parte que tem, obrigatoriamente, de ser memorizada), mas em geografia, sim; isso no segundo ano. Apareceu um professor com um método inteiramente inusitado para nós; ele pretendia que seus alunos alcançassem as respostas certas por dedução. Como eu só tinha 14 anos de idade, não posso afirmar que ele usava a maiêutica, o método socrático de ensino.

Nas provas, ele pedia a turma que consultasse o caderno. Abrir caderno no meio da prova, para mim, era a mais desavergonhada das colas, e vendo meus colegas com a folha de papel almaço do exame com o caderno aberto do lado, eu sentia tudo estranho. Não me adaptava àquela didática, e advieram as notas baixas.

Houve uma vez que, antes de entregar as provas corrigidas a cada aluno, o professor disse que era coisa de analfabeto colocar em ordem crescente  o que ele pedira em ordem decrescente. Não indicou o analfabeto, que era eu, teve, pelo menos, essa delicadeza. Na verdade, aquela aprendizagem de Geografia já me deixava perturbado.

Um dia, ele quis saber das minhas notas em outras matérias. “O que há de errado?” - perguntou depois de ouvir notas acima de 7.

Os exames de setembro e outubro foram decoreba pura; cada aluno recebeu folhas em que estavam desenhados mapas dos cinco continentes. Nós tínhamos de localizar e nomear os acidentes geográficos destacados: rios, ilhas, lagos, mares, penínsulas, etc. Não perdi essas duas oportunidades que me foram dadas e, assim, consegui média para evitar sobressaltos e passar para o ano seguinte.

Com o transcorrer dos anos, vieram os lapsos de memória, nada que me assuste, pois o que esqueço agora me vem à mente depois; o único inconveniente é a perda da fluência numa conversação. Como sou de pouca fala, não há muito a lamentar.

A troca de nomes sim, deixa-me em situação constrangedora, algumas vezes, mas falarei disso mais tarde no verbete “Montorite”.

   

 

VERDADE - “Professora, posso ir ao banheiro?” A resposta da professora ao meu pedido com entonação de pergunta, foi um ríspido “Não”.

Havia uns garotos da minha turma que, depois de dada a permissão para irem ao banheiro, ficavam mais de uma hora sumidos da sala de aula; não há dor de barriga, ou constipação, que exija tanto tempo de uma pessoa na privada. Esses garotos eram os bagunceiros da classe, qualquer pessoa que privasse daquele ambiente os identificaria sem muito esforço. Eu fazia parte do grupo dos quietinhos, dos alunos que recebiam 100 no boletim (as notas da Escola Manoel Bomfim iam de 0 a 100) em comportamento.

Recordo-me do nome de quatro professoras do curso primário – Dona Tereza, Dona Arlete, Dona Eunice e Dona Dulce – já o nome dessa, que enfiava arruaceiros e comportados no mesmo saco) se apagou na minha mente (nesse caso, a minha memória foi seletiva).

Se a minha vontade fosse de urinar, o erro dessa professora intolerante seria menor.

Meu cérebro deu a ordem para que as fezes fossem eliminadas, e eu, me via obrigado a desobedecê-lo. Um pirralho de pouco mais de 8 anos estava sendo torturado em plena sala de aula.

Ao apanhar-me na saída da escola, logo a minha mãe sentiu o cheiro que penetrou nas narinas de Jean Valjean quando ele carregou o republicano Mário nos ombros pelo esgoto de Paris. A primeira reação da minha mãe foi repreender-me, mas, depois, que esclareci o porquê dessa crueldade a que fui submetido, ela disse que a professora deveria me limpar.

Não, que ela ficasse o mais longe possível de mim, principalmente das minhas nádegas.

Meu pai, assoberbado de tanto trabalho em mais de um jornal, não soube desse caso, se soubesse, provavelmente me aconselharia a levar para a sala de aula um penico e o deixasse sobre a mesa, debaixo do nariz da professora.

 

 

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