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sexta-feira, 6 de março de 2015

2806 - o som da fúria, ou, passaporte para a felicidade


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5056                              Data:  26 de fevereiro de 2015

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197ª CONVERSA COM OS TAXISTAS

 

Saindo do prédio das minhas sobrinhas, na Rua Vinte e Quatro de Maio, procurei um táxi e vi um, sem passageiro, que aguardava o sinal verde. Se alargasse as passadas eu o alcançaria, hesitei, o sinal abriu e lá se foi ele. Acenei para um que vinha, a velocidade diminuiu e o carro parou ao meu lado. Abri a porta e vi uma moça sentada no banco do carona sem intenção alguma de saltar.

-Desculpe-me, não sabia que estava ocupado.

-Não; pode entrar, ela é minha noiva.

Entrei estranhando aquela situação; nunca peguei um táxi em que namorada, noiva ou esposa servissem de copiloto.

-Para onde vamos?

Pedi desculpas aos meus professores de francês e respondi:

-Praça Manéte.

Como ele desconhecia o lugar, fiz o papel que a sua noiva, como navegadora, deveria fazer: dei-lhe todas as coordenadas.

-No Méier, pouco antes do sinal do Hospital Pasteur, o sinal fechou, os freios foram acionados, quando um ônibus, para partir na frente, enfiou-se no espaço que seria do táxi, tomando-lhe a passagem e ficando entortado à sua frente.

-O que é isso?!... indignei-me.

-Por pouco não me quebra o retrovisor. - disse ele.

-Quando eu estava vindo do Centro para o Engenho Novo, aconteceu algo parecido com o táxi em que eu estava.- manifestei-me.

Com o sinal fechado e o ônibus atravessado à nossa frente, a tal noiva permanecia emudecida, ele, não:

-Se o motorista abalroa o meu táxi, não vai ter prejuízo algum; a empresa dele recorre na justiça e nada é decidido. Eu tenho 75% de calma e 15% de nervos; um amigo meu tem 95% de nervos. Sabe o que ele faz quando o seu carro é fechado por um ônibus que lhe arranca, por exemplo, o retrovisor?

-O que ele faz?

-Ele sai com uma barra de ferro e arrebenta todo o parabrisa do ônibus, depois diz para o motorista que estão quites, que cada um fica, agora, com o seu prejuízo.

Sem tomar folego, foi em frente com o táxi, pois o sinal abrira.

-Você sabe que, da metade para a frente dos ônibus, o motorista é que responde pelo prejuízo, e, da metade para trás, o trocador?

-Mas um número grande de ônibus, atualmente, não têm trocadores? - estranhei essa divisória.

-Então, o motorista responde pelo ônibus inteiro.

Falava por ele e pela noiva.

-Eu ainda me controlo, como disse: são só 15% de nervos.

-São 15% dos instintos mais primitivos”, como o Roberto Jefferson disse para o José Dirceu. -falei.

-Roberto Jefferson?!... - buscou na memória.

-O delator do mensalão, aquele que salvou o Brasil de ter o José Dirceu como presidente, pois ele seria o sucessor do Lula.

Evitou que o tema desgarrasse para a política:

-Há um filme “O Dia de Fúria”, com o Michael Douglas...

-Assisti a esse filme no cinema. - aparteei.

-Você viu?- voltou-se para a noiva.

Ela meneou negativamente a cabeça. Seria noiva mesmo? - perguntei-me.

-Aquilo é verdade; há distúrbios de ansiedade, doenças associativas no nosso cérebro que vão se acumulando e, então, você explode num dia de fúria. Eu já tive um dia de fúria.

Para contar como foi esse dia em que seus instintos mais primitivos afloraram, quando os 15% se tornaram 100%, aludiu a um bilhete que existia, não há muito tempo, pois ele estava na casa dos 30 anos. Nesse bilhete ou cartão, constavam 60 reais, o único dinheiro que possuía para se virar durante um bom tempo.

-Enfiei o bilhete na máquina, e ela o engoliu.

Fui informado, por uma pessoa que estava próxima, que uns malandros adulteravam a máquina, esgarçavam a abertura, e os bilhetes eram engolidos; três dias depois, eles abriam tudo e recolhiam todos os bilhetes para, depois, negociar.

Voltou-se para a noiva:

-Lembra-se? Eram bilhetes da Telemar.

A sua resposta foi monossilábica; não se lembrava.

-Pedi o pé de cabra dessa pessoa emprestada e tive o meu dia de fúria: arrebentei aquela máquina. Um monte de gente, espantada, ficou me rodeando, enquanto eu quebrava aquilo tudo. Quando apareceram os bilhetes, eu disse que ia pegar apenas o meu; peguei, pus no bolso e fui embora.

-Nós não podemos ficar submissos. - limitei-me a dizer.

-Há também o filme “O Dia de Cão”...

-O correto nesse caso é “O Dia de Fúria”, pois o “Dia de Cão” é um filme que tratava de assalto a um banco em que o personagem do Al Pacino queria dinheiro para uma cirurgia de mudança de sexo. - aparteei.

-Falo de outro filme, mas tudo bem.

Nós estávamos agora na Avenida Suburbana.

-A doença da atualidade qual é?

Era uma pergunta retórica, mas eu respondi:

-O estresse.

-Sim, o estresse, na verdade, a depressão, porque tudo culmina na depressão. Surgem, então, a diabete, as doenças do coração, o câncer, porque tudo é somatizado.

-Sim; reprimir, interiorizar os nossos impulsos nos fazem muito mal. Esse seu gesto de arrebentar com aquela máquina foi até bom para a sua saúde.

Quando eu falava em catarse, ele me indagou de novo sobre o meu destino.

-Praça Manet, embora todo o mundo só a conheça como Manéte ou Mané. Basta agora você virar à direita na rua defronte a catedral do Bispo Macedo.

-Eu não conheço muito bem isto aqui. - admitiu.

-A conversa está muito boa, mas vou ficar aqui. - disse-lhe arrancando um sorriso da noiva dele, que exibiu um aparelho ortodôntico nos maxilares superior e inferior.

-São 18 reais.

Paguei-lhe enquanto pensava se, agora, ele já estava com dinheiro suficiente para levar a noiva para um local onde pudesse relaxar.

Em casa, procurei uma frase do Macbeth de Shakespeare que se achava desfragmentada na minha memória:

-”A vida é uma história cheia de som e fúria que significa nada.” 

 

 

 

 

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